Como carregara a certeza que havia nascido pra algo grande
à vida inteira, aquele homem já aos vinte e nove anos, finalmente se dava conta
que talvez não tivesse nascido era pra nada. Nada mesmo. Ele era vazio como
Macabéia de Clarice Lispector, a diferença era que se achava tão cheio quanto
Dostoievski. Também, ele escolhera a literatura, que era um ramo difícil pra se
destacar e ser grande como ele sonhava. Na literatura, pela sua vivência na
luta, ele entendeu que talvez não se conseguisse vencer somente com luta. Ou
talvez ele que lutasse pouco. Não se sabe. Ora, a escrita, por ser amplamente
democrática, pra se destacar no que vai além do comum, é preciso qualquer coisa
que ele não tinha e não sabia onde buscar. E talvez a escrita,
diferentemente do que ele pregava ao mundo, não passasse da forma que ele tinha
escolhido pra vencer na vida, ou melhor, ganhar dinheiro, pra consequentemente
ser respeitado como gente, pois até então era como merda n’água boiando ao
sabor das correntes. Talvez no fundo, pouco importava os meios como
ele iria conseguir dinheiro pra possuir coisas e existir, o que importava mesmo
era que conseguisse. Certo que depois dos cinquenta talvez ele se desse conta
que existir era muito mais que possuir isto ou aquilo. Mas por enquanto,
naquela ânsia por casar-se, construir família, ter filhos, ele precisava mesmo
era de dinheiro, toda a metafísica relacionada a existir que se explodisse.
Nesta ânsia, ele tinha uma ideia de dinheiro muito além da
sua realidade, pois se ele não tinha dinheiro algum, justo que se contentasse
com pouco. Mas não. Ele queria muito, mas muito mesmo. Queria o suficiente pra
não precisar mais de dinheiro. Tipo: ter dinheiro pra conseguir comprar o que
quisesse tão somente lhe surgisse o desejo. Mas por osmose ele não
conseguiria, trabalhando também não. O jeito era se tornar um grande escritor,
ou ganhar na loteria. E como ele tentava... Tanto apostando nos jogos quanto no
sonho de ser o primeiro escritor brasileiro a ganhar um prêmio Nobel. Mas
parecia que vencer no ramo literário era mais difícil que ganhar na loteria.
Embora ele jogasse também só pra manter suas esperanças vivas, pois ele sabia
que no Brasil, com o nível de corrupção enraizado em tudo, talvez os jogos da
caixa econômica fosse somente outra forma dos políticos roubarem de forma mais
direta os cidadãos.
À medida que o tempo passava, ele já perdia as esperanças
em ambos os sonhos, uma vez que a crença e o pensamento positivo não eram
suficientes pra que ele os realizasse, diferentemente do que pregava a
autoajuda e os palestrantes Coach. No entanto, toda semana,
ele fazia mais um jogo na loteria, ainda que sem esperanças reais. Esperanças
reais ele não tinha, mas ainda ficava fazendo planos do que iria fazer com o
dinheiro do prêmio caso ganhasse. Iria fingir que era pobre ainda por um bom
tempo pra que ninguém desconfiasse que ele fosse milionário, isso era pra
evitar ambições e não pôr em risco a sua família. Ele tinha a ideia que só ter
a certeza de que tinha o dinheiro na conta bastaria; que não iria ter a
necessidade de extravagâncias, como carros de luxo, mansões, essas coisas que
faria com que todos soubessem que tinha sido ele a ganhar o prêmio. O
importante era que nunca mais ele iria ter que se privar, por exemplo, de ir um
jantar com os amigos por falta de uns trocados. Nunca mais ele iria deixar de
ir a um encontro por falta de dinheiro pra pagar um lanche pra companheira.
Nunca mais faltaria dinheiro pra um açaí aos fins de tarde. Isto seria
maravilhoso. A única coisa que ele compraria seria um vídeo game de
última geração pra conseguir frear o desejo de sair de casa e gastar seus
milhões as vistas de Deus e o mundo. Pois vontade ele teria, lógico, mas logo
descobririam que ele era o ganhador do prêmio e cairiam pra cima pedindo, ou
assaltando, ou matando. O que não faltavam era notícias de pobres coitados que
ganharam grandes fortunas e foram assassinados brutalmente nos noticiários.
Numa semana despretensiosa, ele havia mais uma vez repetido
um jogo que fizera na semana anterior e foi conferir o resultado na
internet. Quão grande não foi sua surpresa ao ver que os números coincidiam.
Ele não quis acreditar. Soltou o comprovante no chão do seu quarto sem piso,
foi até a geladeira, tomou um copo com água - e ofegante retornou ao quarto sem
ainda cair à ficha. Como o quarto nunca tivera luz, a escuridão impedia que ele
conseguisse reencontrar de primeira o comprovante da aposta, fato que fez com
ele entrasse em desespero por bobagens que lhe surgiam a mente: e se alguém
tivesse entrado no quarto enquanto ele havia ido tomar
água e sua fortuna antes mesmo dele a ter de fato? Movido por esses
pensamentos loucos, com a lanterna do celular ele iluminava o quarto até que
conseguiu encontrar o comprovante. Ele olha novamente os números, o coração a
mil, constata que de fato havia ganhado 23 milhões de reais.
Atordoado, deita-se na sua rede antiga, cheira seu lençol
que talvez já datasse de mais de sete anos, e tenta ficar parado, mas não
consegue. Ele olha pra sala, nota sua mãe em frente à televisão vendo suas
novelas e pensa em correr, abraça-la e contar que todas as privações, toda dor
dela em relação à falta de dinheiro acabara ali, pois ele havia finalmente
ganhado na loteria. Porém não o fez. Ele queria guardar só pra si aquela
alegria um pouco mais. Sem contar que ele já tinha repetido mentalmente aquele
momento milhares de vezes. Ele não iria contar pra sua mãe de cara. Só contaria
quando finalmente tivesse com o dinheiro em mãos e não seria assim, de cara,
contando que havia ganhado na loteria. Primeiro ele iria comprar carnes todos
os dias, fato que faria com que ela estranhasse da onde ela tirava o dinheiro,
ele responderia que não se preocupasse com isso. Depois compraria cerâmica pra
colocar na casa toda, pois era um dos sonhos da sua mãe. Mandaria arrumar a
casa toda, da maneira que sua mãe sempre sonhara. Sem dizer que estava rico
iria realizar todos os sonhos dela. Talvez nunca contasse de fato, ela não iria
aguentar sem contar ao mundo que estava rica. E seria muito justo que contasse
ante todas as humilhações que ela passara a vida toda por ser pobre, por não
ser ninguém.