segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Um homem de sorte





Como carregara a certeza que havia nascido pra algo grande à vida inteira, aquele homem já aos vinte e nove anos, finalmente se dava conta que talvez não tivesse nascido era pra nada. Nada mesmo. Ele era vazio como Macabéia de Clarice Lispector, a diferença era que se achava tão cheio quanto Dostoievski. Também, ele escolhera a literatura, que era um ramo difícil pra se destacar e ser grande como ele sonhava. Na literatura, pela sua vivência na luta, ele entendeu que talvez não se conseguisse vencer somente com luta. Ou talvez ele que lutasse pouco. Não se sabe. Ora, a escrita, por ser amplamente democrática, pra se destacar no que vai além do comum, é preciso qualquer coisa que ele não tinha e não sabia onde buscar.   E talvez a escrita, diferentemente do que ele pregava ao mundo, não passasse da forma que ele tinha escolhido pra vencer na vida, ou melhor, ganhar dinheiro, pra consequentemente ser respeitado como gente, pois até então era como merda n’água boiando ao sabor das correntes.  Talvez no fundo, pouco importava os meios como ele iria conseguir dinheiro pra possuir coisas e existir, o que importava mesmo era que conseguisse. Certo que depois dos cinquenta talvez ele se desse conta que existir era muito mais que possuir isto ou aquilo. Mas por enquanto, naquela ânsia por casar-se, construir família, ter filhos, ele precisava mesmo era de dinheiro, toda a metafísica relacionada a existir que se explodisse.

Nesta ânsia, ele tinha uma ideia de dinheiro muito além da sua realidade, pois se ele não tinha dinheiro algum, justo que se contentasse com pouco. Mas não. Ele queria muito, mas muito mesmo. Queria o suficiente pra não precisar mais de dinheiro. Tipo: ter dinheiro pra conseguir comprar o que quisesse tão somente lhe surgisse o desejo.  Mas por osmose ele não conseguiria, trabalhando também não. O jeito era se tornar um grande escritor, ou ganhar na loteria. E como ele tentava... Tanto apostando nos jogos quanto no sonho de ser o primeiro escritor brasileiro a ganhar um prêmio Nobel. Mas parecia que vencer no ramo literário era mais difícil que ganhar na loteria. Embora ele jogasse também só pra manter suas esperanças vivas, pois ele sabia que no Brasil, com o nível de corrupção enraizado em tudo, talvez os jogos da caixa econômica fosse somente outra forma dos políticos roubarem de forma mais direta os cidadãos.

À medida que o tempo passava, ele já perdia as esperanças em ambos os sonhos, uma vez que a crença e o pensamento positivo não eram suficientes pra que ele os realizasse, diferentemente do que pregava a autoajuda e os palestrantes Coach.   No entanto, toda semana, ele fazia mais um jogo na loteria, ainda que sem esperanças reais. Esperanças reais ele não tinha, mas ainda ficava fazendo planos do que iria fazer com o dinheiro do prêmio caso ganhasse. Iria fingir que era pobre ainda por um bom tempo pra que ninguém desconfiasse que ele fosse milionário, isso era pra evitar ambições e não pôr em risco a sua família. Ele tinha a ideia que só ter a certeza de que tinha o dinheiro na conta bastaria; que não iria ter a necessidade de extravagâncias, como carros de luxo, mansões, essas coisas que faria com que todos soubessem que tinha sido ele a ganhar o prêmio. O importante era que nunca mais ele iria ter que se privar, por exemplo, de ir um jantar com os amigos por falta de uns trocados. Nunca mais ele iria deixar de ir a um encontro por falta de dinheiro pra pagar um lanche pra companheira. Nunca mais faltaria dinheiro pra um açaí aos fins de tarde. Isto seria maravilhoso.  A única coisa que ele compraria seria um vídeo game de última geração pra conseguir frear o desejo de sair de casa e gastar seus milhões as vistas de Deus e o mundo. Pois vontade ele teria, lógico, mas logo descobririam que ele era o ganhador do prêmio e cairiam pra cima pedindo, ou assaltando, ou matando. O que não faltavam era notícias de pobres coitados que ganharam grandes fortunas e foram assassinados brutalmente nos noticiários.        
  
Numa semana despretensiosa, ele havia mais uma vez repetido um jogo que fizera na semana anterior  e foi conferir o resultado na internet. Quão grande não foi sua surpresa ao ver que os números coincidiam. Ele não quis acreditar. Soltou o comprovante no chão do seu quarto sem piso, foi até a geladeira, tomou um copo com água - e ofegante retornou ao quarto sem ainda cair à ficha. Como o quarto nunca tivera luz, a escuridão impedia que ele conseguisse reencontrar de primeira o comprovante da aposta, fato que fez com ele entrasse em desespero por bobagens que lhe surgiam a mente: e se alguém tivesse  entrado no quarto enquanto ele havia ido  tomar água e sua fortuna antes mesmo dele a ter de fato?  Movido por esses pensamentos loucos, com a lanterna do celular ele iluminava o quarto até que conseguiu encontrar o comprovante. Ele olha novamente os números, o coração a mil, constata que de fato havia ganhado 23 milhões de reais.

Atordoado, deita-se na sua rede antiga, cheira seu lençol que talvez já datasse de mais de sete anos, e tenta ficar parado, mas não consegue. Ele olha pra sala, nota sua mãe em frente à televisão vendo suas novelas e pensa em correr, abraça-la e contar que todas as privações, toda dor dela em relação à falta de dinheiro acabara ali, pois ele havia finalmente ganhado na loteria. Porém não o fez. Ele queria guardar só pra si aquela alegria um pouco mais. Sem contar que ele já tinha repetido mentalmente aquele momento milhares de vezes. Ele não iria contar pra sua mãe de cara. Só contaria quando finalmente tivesse com o dinheiro em mãos e não seria assim, de cara, contando que havia ganhado na loteria. Primeiro ele iria comprar carnes todos os dias, fato que faria com que ela estranhasse da onde ela tirava o dinheiro, ele responderia que não se preocupasse com isso. Depois compraria cerâmica pra colocar na casa toda, pois era um dos sonhos da sua mãe. Mandaria arrumar a casa toda, da maneira que sua mãe sempre sonhara. Sem dizer que estava rico iria realizar todos os sonhos dela. Talvez nunca contasse de fato, ela não iria aguentar sem contar ao mundo que estava rica. E seria muito justo que contasse ante todas as humilhações que ela passara a vida toda por ser pobre, por não ser ninguém.