quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Consequências




Desde que nasceu ele foi lançado ao Deus dará. O pai, jamais conhecera. A mãe, pouco centrada, o alimentava e vestia por obrigação. Gestos de carinho para com ele,  ela proferia somente na presença dos vizinhos numa tentativa infrutífera de manter uma boa imagem. Se lhe faltava dinheiro, ela descontava em forma de pancadas no filho; se brigava com o namorado, da mesma maneira. Sempre que se sentia infeliz com qualquer coisa, ela acabava por descarregar no filho de alguma forma. De modo que ele foi crescendo sozinho. E em meio à solidão, aquele garotinho foi cada vez mais se aprofundando em si mesmo. Não lhe foi permitido que ele construísse o seu leviatã, então os pensamentos selvagens foram encontrando terreno fértil para se expressarem. 
Ainda na mais tenra infância, ele passava horas no jardim tentando encontrar razões pra não fazer xixi nos formigueiros. Mas não encontrando, ele inundava cada um deles, e, instintivamente, sentia-se bem ao ver as formigas em fuga. Aquele gesto lhe parecia justo. 

Estranhamente, em suas noites solitárias, ele alimentava o desejo de encontrar um garotinho gordo na rua pra enchê-lo de beliscões até jorrar sangue daquele corpo macio. Mas das poucas vezes que teve chance de realizar tal ímpeto, não ficava sem consequências. Sempre o pai de alguém vinha reclamar com sua mãe e ele sempre apanhava mil vezes mais que os beliscões que ele dava no colega. Assim sendo, ele foi, aos poucos, entendendo a diferença entre as formigas e os homens. Ora, tudo tinha consequências. Nenhum ato, por menor que fosse, era perdoado. A vida tinha uma ordem que se não seguida, o convívio com as outras pessoas não era possível e as consequências eram sempre drásticas. Ele passou odiar aquelas limitações.  

À medida que ele crescia, cada vez mais sozinho, não faltava tempo pra que pensasse sobre a vida, sobre a existência das coisas e de si mesmo, e sempre chegava a conclusão que tudo era uma causa perdida. Ao chegar a vida adulta, apesar de pouco sociável, ele precisou, como todo mundo, tornar-se alguém na vida. Embora no seu íntimo ele não suportasse aquelas obrigações fúteis da vida comum, ele seguiu a ordem: estudou, trabalhou, conheceu alguém atraente, ao menos à primeira vista, e casou-se.
O matrimônio não durou muito. Não por ele ser violento, ou qualquer coisa que o valha. Até que aquele garotinho selvagem tornou-se pacato até demais após a adolescência. Era que simplesmente o mistério que existia em relação a sua esposa desapareceu e levou consigo o “tesão” que ele sentia por ela. Ela era uma mulher comum, com problemas comuns e aquelas futilidades lhe pareciam pouco agradáveis. 

Depois do divórcio, ele retornou a sua solidão costumeira. Apenas alguns relacionamentos efêmeros, nada que o obrigasse a conviver mais que uma semana com a mesma pessoa. 
Depois de trinta anos trabalhando como professor do Estado, se aposentou, foi então que o vazio da infância lhe ocorreu novamente e daquela vez com maior intensidade, uma vez que ele já não tinha mais obrigações reais para com ele nem para com outro alguém.
Sem filhos, sem ninguém que ele amasse ao ponto de lutar por suas existências, os pensamentos sombrios e o ódio pela ordem da sociedade foram tomando forma em sua mente cheia de inutilidades. Ele queria a liberdade de descarrilar a ordem sem que as consequências caíssem sobre ele, assim como inundava formigueiros no jardim enquanto criança e nada acontecia. 

Eis que, dois anos depois de aposentado, numa manhã de setembro, ele tomou um ônibus na rua que ele sempre morou e passou a rodar a cidade com destino já traçado. Numa avenida do centro, ele levantou-se, se dispôs do lado do motorista, olhou para as poltronas atrás de si; eram tantos rostos comuns, tantas pessoas preocupadas com futilidades que ele não suportava. Tomou o revólver que trazia consigo, apontou para o motorista, porém, antes de apertar o gatilho, teve tempo pra se arrepender daquele plano idiota, mas o gesto já tinha sido proferido, as pessoas já tinham visto, se ele voltasse atrás, as consequências iriam cair sobre ele. Mas não daquela vez. Foi então que ele apertou o gatilho tirando a vida do motorista, tomou o volante e girou-o a toda pra direita levando o ônibus de encontro aos pedestres na calçada. Após alguns metros, o ônibus tombou.

Quando o ônibus parou depois de atropelar dezenas de pessoas, aquele homem sem vida notou que ainda respirava, e ouvindo os gritos das pessoas na rua, gritos que eram consequências da sua loucura, procurou em volta o revólver de modo a concluir os seus planos de descarrilar a ordem e fugir das consequências, mas a arma tinha se perdido na confusão. Entrou em desespero, mas com uma perna quebrada, nada podia fazer. Ele seria obrigado, mais uma vez, enfrentar as consequências dos seus atos. Pior castigo não podia existir. 

Um comentário:

  1. Infelizmente pessoas criam pessoas assim, mas todos em algum momento teve a oportunidade de mudar de rumo,mas não quiz! Cada um é responsável sim por seus atos!

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