quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Um sonhador de araque



Saiu às quatro da manhã rumo à praça central da cidade. Munido de uma vitrola, um cachecol vermelho, umas botas velhas, uma rosa, um sonho - e alguns poemas, ele resolveu que ia existir aquele ano. Ele carregava consigo sonhos maiores que os céus e não podia permitir que o mundo continuasse ignorando sua existência. Tinha certeza que havia nascido para grandes coisas e precisava mudar o curso da sua vida.

Ciente de sua insignificância,  tão logo chegou a praça, resolveu que sentiria primeiro a brisa fria da madrugada adentrando as narinas, pois era a única coisa que o acalmava. Sentou-se no velho banco, dispôs a vitrola entre as pernas e acendeu um cigarro. Passou a vista ao redor da praça, imaginando quantas pessoas daquela pequena cidade não se encontravam dormindo sem entender as possibilidades, ou mesmo sonhando em ser além do que eram. Imaginou que, talvez todos que ali viviam já tinham esgotado todas as possibilidades do que tinham de ser em suas pacatas existências. Mas ele não, ele tinha sonhos e lutaria por eles, até o fim, contra tudo e contra todos.

O dia já dava sinal de vida por sobre as nuvens e, mal clareasse todo o horizonte, ele iria dar curso a sua empreitada pra existir no novo ano. De manhã, ele acionaria tchaikovsky em sua vitrola, exibiria sua rosa no bolso esquerdo, e gritaria poemas de própria autoria para os transeuntes nas ruas. Com aquele ato, ele começaria a ser o poeta que sempre foi e o mundo teria que se envergar aos seus intentos, querendo ou não.

Enquanto esperava,  refletiu sobre as falácias dos habitantes da sua cidade. Pensou em cada fala que sairia da boca dos seus conterrâneos, um por um, pois conhecia todos.  Lucélia, filha do quitandeiro da esquina, com seus celulares e pele macia jamais exposta ao sol, sequer se prestaria o trabalho de proferir uma palavra que fosse sobre seu ato pra existir, pois estava cheia demais de si e distante da realidade de um poeta miserável como ele. Pensou no seu tio, trabalhador que jamais saíra do século passado, esbravejando pra sua esposa - aquele filho de Maria é um vagabundo sem eira nem beira, enlouquecera de vez. Eu sabia que ele jamais chegaria a lugar algum. Está destinado a miséria para o resto da vida, ele e toda a família.
Pensou nos seus amigos que se afastariam, pois não poderiam conviver com um louco sonhador. Pensou em Eliane, o amor da sua vida, que se também o amava, aguardava com poucas esperanças que ele se tornasse alguém para que pudesse cogitar a possibilidade de ficarem juntos. E  agora, por aquele caminho que ele escolhera, as chances iam-se por água a baixo, uma vez que os pais de Eliane, até mesmo ela, não suportaria as faláceas dos mexeriqueiros da cidade, de modo que, o casamento com o filho do dono da auto peças seria algo inevitável. Ele, coitado, estava destinado a perder os amores da sua vida, sabe-se lá Deus até quando.

Vivendo naquela minúscula cidade de interior em que ainda se deixava o leite nos alpendres, aquele pobre homem já havia perdido o amor da sua vida dezenove vezes. Não que isso fosse grande coisa, todos perdem o amor da sua vida tão cedo quanto as madrugadas - e nem por isso lhes são esgotadas todas as esperanças de felicidade; é que dezenove vezes era uma soma e tanto para alguém tão jovem. E também, Eliane era uma ilusão diferente. E mesmo,  lhe custaria muito conquistar o vigésimo amor da sua vida; não tinha certeza se ainda lhe restava forças para tanto.

À medida que o dia se tornava mais evidente, a sua vergonha também. O  receio dos vexames alheios e do que aconteceria com a sua já surrada imagem lhe clareava a mente e escurecia seus sonhos. E se ele não passasse de um zé ninguém que tinha como lenda pessoal catar conchas na praia para produzir calcário, assim como seu pai?  Parece que as madrugadas alimentam nossos sonhos com coragem, mas o dia, os enfraquecem.

Chegou o dia e, com ele, os primeiros viventes à praça. A claridade evidenciava a rosa no seu bolso esquerdo e antes que alguém visse, ele escondeu-a sorrateiramente. Suas botas, como eram as que sempre usava, não precisou tirá-las. Enrolou a vitrola no cachecol e foi-se pra casa como o merdinha de nada de sempre.  Santo de casa não obra milagre - pensou ele - um dia parto dessa cidade em que sou incompreendido e torno-me quem eu sou.
Na madrugada seguinte, ele retornou a praça com os mesmos apetrechos e a mesma coragem de todo dia. Uma hora ou outra ele tomaria coragem de enfrentar o dia e o céu seria o limite. 

11 comentários:

  1. Um texto duro, com uma bela reflexão, temos sonhos nossos e nem temos coragem. Na manhã seguinte começar tudo de novo e nossos sonhos e coragens vão para a gaveta para serem retirador a noite. :(
    Beijinhos, Helana ♥
    In The Sky, Blog / Facebook In The Sky

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  2. Que texto lindo, senti toda a emoção que foi colocada. É um grande desafio recomeçar tudo mas é preciso coragem... parabéns pelo texto, ótima reflexão.

    http://devaneiodeflor.blogspot.com.br/

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  3. Olá!
    Que texto maravilhoso!
    Me tocou bastante, fiquei aqui até refletindo com suas palavras. Sonhar é preciso, mas sem coração ele vai sempre ser apenas um sonho.
    Acho que é o primeiro seu que leio. Amei, parabéns!

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  4. Oie!!
    Que texto lindo!!!
    Minha nossa fiquei realmente comovida enquanto o lia... O sonho é importante, mas o primeiro passo é mais ainda!
    Primeiro texto que eu leio seu e simplesmente adorei... parabens porque vc escreve bem demais

    beijos
    Livros & Tal

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  5. Nossa, que lindo!!! É a realidade de muitos, que tentam vencer suas inseguranças.
    Parabéns pelo texto!

    Bjs
    www.livrosdabeta.blogspot.com.br

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  6. Muito significativo. Amei o texto pelo real sentido e pela forma como foi conduzido.
    Parabéns!

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  7. Muito significativo. Amei o texto pelo real sentido e pela forma como foi conduzido.
    Parabéns!

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  8. Olá, tudo bem? Adorei bastante o texto e o que nos faz pensar. Muito bem escrito viu? Amei!
    Beijos,
    diariasleituras.blogspot.com.br

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  9. um texto lindo cada palavra demonstra sentimentos realmente sentimos oque si passa no texto e isso é bom parabens sucesso

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  10. Todos nós temos um sonho, mas muitas vezes falta coragem para ir em frente com ele. Nós não podemos desistir, recuar, sonhar é preciso, sonhar é essencial para a nossa vida. O texto é bastante emocionante, encantador, é uma reflexão pra nós, abraços.

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  11. Gostei muito, muito.
    Ótomo texto. Parabéns!

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