quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O bilhete


Ela deixou um bilhete sobre a camisa do dia passada no lado dela na cama antes de sair. Eram poucas palavras, sem letras trêmulas ou marcas de lágrimas. O bilhete dizia apenas que já não suportava a monotonia de sonhar aos pedaços com alguém que não sabia o valor dos sonhos. 

Ele abre os olhos às 6:45, nota o bilhete, mas julga ser aquele papel mais uma das bobagens românticas da sua mulher que ele julgava uma eterna adolescente. "Quinze anos depois e ela ainda sonhava com contos de fadas." Ele levanta-se, e ignorando o romantismo aparente, prefere tomar banho antes de ler, afinal, só leria mesmo por obrigação - e como das outras vezes - era só seguir o protocolo: pentearia os cabelos, poria os pés brancos nos sapatos novos, vestiria a camisa passada com cheiro de amaciante, se direcionaria pra cozinha, encontraria a esposa servindo o café na sua xícara de estimação com o mesmo sorriso de quinze anos atrás, como se ela fosse uma imagem congelada no tempo. Então ele diria umas palavras decoradas como: "adorei o bilhete", depois faria promessas que jamais cogitaria a possibilidade de cumpri-las e sairia pra rua com a sensação que tinha se libertado de qualquer coisa incômoda. 

Ao sair do banheiro, pensara nos papéis que teria que organizar no trabalho, na voz doce da secretária do chefe, no Happy hour do final da tarde que ele estenderia até a meia noite, então pensara nos cinco minutos de sexo sem desejo que teria com a esposa ao chegar bêbado em casa - e nada lhe ocorreu. Era como se a vida fosse um trilho e ele um trem que fazia sempre a mesma rota. Pôs o bilhete de lado, vestiu a camisa, os sapatos, sentou-se no lado dela da cama e abriu com desinteresse o bilhete que dizia: "Eu já não suportava a monotonia de sonhar aos pedaços com alguém que não sabe o valor dos sonhos. Não me procure mais. Adeus!" 

Ao se deparar com aquelas palavras, ele imagina que ela se escondera no armário a fim de lhe pregar uma peça somente pra que ele fingisse sorrir pela manhã como sempre; mas ao abrir o closet, não havia mais vestígios dela ali; nem o sorriso, nem as bolsas, os vestidos, nada. Ele correu pra cozinha com o coração apertado pensando que se aquilo era uma brincadeira ela tinha ido longe demais. Porém, ao chegar, mais uma vez não encontra aquele sorriso que pra ele sempre fora o mesmo. Senta-se a mesa no lugar de sempre, nota a xícara disposta na posição de sempre, mas sem café. Ele serve o próprio café pela primeira vez em anos e o barulho do líquido na cerâmica da xícara o faz perceber o silêncio proporcionado pela falta do sorriso da esposa. O aperto no peito aumenta, seus olhos ensaiam umas lágrimas, mas ele se dá conta que homens não choram. Ele inspira o ar da manhã, mas sente que o ar frio lhe corta os pulmões. Nesse pequeno intervalo do respirar fundo, lhe ocorre a possibilidade de nunca mais ver a mulher do sorriso mais lindo e cativante do mundo. Ali ele percebe que sem aquele sorriso a sua vida era um trem silencioso e sem cor fazendo a mesma rota todos os dias. 

Ela só queria sair dos trilhos de vez em quando. Só então ele se dá conta que o sorriso dela era um convite e ele nunca percebeu que era sempre pra uma festa diferente.




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