quinta-feira, 8 de junho de 2017

A caça







Com os pés descalços, aquele garotinho loiro, de pernas finas e abdômen sinuoso, corria pelo quintal de cajueiros com a certeza que uma hora ou outra aprenderia a usar o estilingue que sua mãe lhe comprara aos custos dos olhos e balearia um pássaro qualquer cujo este lhe serviria de janta ou coisa parecida. Mas apesar das tentativas, parecia que ele não tinha nascido com o dom para caça, não de pássaros. Talvez se ele fosse mais longe obtivesse mais êxito, pois os pássaros não se aproximavam da casa, salvo os pequenos que não serviam de alimento e, por conseguinte, também era mais difícil acertá-los, porém ele tinha medo de tudo; de troncos de árvores secas, de carros pretos, de gringos que roubavam criancinhas para fazer sabão e mais um infinidade de coisas... Se ele tomava certa distância de modo que não visse mais a mãe a lavar a louça do almoço na pia ao ar livre, ele sentia que os monstros, as raposas, os lobisomens o devorariam ainda vivo, e sozinho, ele não poderia fazer nada em defesa de si mesmo. Se ao menos o seu pai lhe acompanhasse na caçada. Porque ele tinha medo de tudo, mas enquanto estava com o seu pai era como se nada pudesse atingi-lo. Se ele via os troncos que outrora lhe provocava tremeliques nas pernas, ele dizia pra si mesmo a plenos pulmões: "venham agora seus desgraçados, agora eu estou com o meu pai, vocês não podem me devorar."

Trajando a velha bermuda azul marinho que sua mãe confeccionara de uma calça da Adidas, presente dos parentes de São Paulo, ele corria feliz e sujo, ignorando totalmente a vida dos adultos. Ele não entendia porque os adultos brigavam o tempo todo, porque se preocupavam com o almoço de amanhã ou onde dormiriam quando as redes de algodão finalmente se rasgassem completamente. A vida pra ele era uma grande manga madura que ele mordia com gosto todos os dias como se jamais fosse ver outra igual. 

Sempre com um olho na copa dos cajueiros e outro na mãe que lavava a louça enquanto reclamava da vida árdua que vivia como sempre fazia, ele se sentia o maior caçador do mundo, mesmo nunca tendo matado nada além de formigas. A mãe alternava entre instruções pra que ele não se afastasse e reclamações do cotidiano: “a noite não teria isto ou aquilo, amanhã também não, os próximos dias seriam mais difíceis ainda - e assim por diante”.

Ele já estava acostumado com as brigas da mãe com o pai devido questões financeiras; era só mais um dia comum. O pai, este ouvia tudo calado enquanto concertava na calçada um relógio Oriente sem valor calórico algum, logo, sua mãe odiava os relógios e os rádios que o pai vivia a concertar uma vez que tal atividade não provia alimento para os filhos. Até que, seu pai chega ao seu limite e, irritado com os gritos, toma uma foice, destas que se usa em atividades agrícolas e corre atrás da sua mãe na intenção de feri-la, ou de assustá-la, não se sabe. O garotinho loiro de seis anos, solta o estilingue e fica parado observando sua mãe correr em desespero em direção contrária a ele. Nada ele podia fazer em defesa de sua mãe, a não ser gritar. Até que seu pai desiste, ou porque não tinha intenção mesmo de feri-la ou devido os gritos do garotinho desesperado - e retorna pra casa ainda munido da foice. O garotinho corre até a mãe, mas aos seis anos de idade não lhe ocorria palavras de consolo, nem podia lhe dá um abraço de segurança ou qualquer coisa que o valha, somente se juntou a sua condição e chorou com ela. 

Aquele dia, aquele garotinho magricelo foi teletransportado por vias tortuosas para o mundo dos adultos. Ele passou a entender a preocupação com o amanhã, pois agora ele compreendia o medo que os adultos tinham oriundo da certeza que por qualquer razão o sol talvez não nascesse no dia seguinte. 
A segurança que antes o pai lhe proporcionava, que é o papel principal da figura masculina no desenvolvimento de um filho, já não existia mais. Se antes as paredes e o seu lençol lhe protegiam do ataque do lobisomem durante a noite, agora que o lobisomem estava no quarto ao lado, já não tinham esse poder. Inúmeras e inúmeras noites aquele garotinho passou acordado pensando que a qualquer momento seria devorado pelo lobisomem. E se ele agora via, ouvia, sentia como um adulto, aquela criança de seis anos permaneceria pra sempre em algum recôndito dentro dele e o impediria de amadurecer por completo pra sempre. 

Naquele dia, aquele garotinho loiro foi forçado a abandonar a caça aos pássaros pra caçar, sem êxito, seus próprios demônios. 

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