quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O afinador de pianos



Horácio faleceu às quinze horas enquanto afinava o piano de Anastácia Vespato pela enésima vez nos últimos quatro anos. Por razões que ambos conheciam, aquele piano tinha o dom de desafinar ainda que ninguém o tocasse de dois em dois dias. 
Anastácia ostentava setenta e três anos e Horácio poderia ter completado setenta e seis, senão fosse aquela natural fatalidade enquanto ele pressionava repetidamente o dó do piano aquela tarde. 

Anastácia preparava um chá na cozinha para que tomassem depois que Horácio constatasse que o piano se encontrava tão afinado quanto dois dias antes. 
Ambos sentariam na varanda, Anastácia lhe serviria o chá, lhe ofereceria biscoitos que ele recusaria com um gesto de negação. E passados exatos um minuto e meio em silêncio, Horácio perguntaria a quantas andava os planos da pintura da casa, e Anastácia responderia que ainda estava em dúvida sobre as cores, embora já tivesse assuntado com o pintor pra que ficasse atento que tão logo ela se decidisse, iria chamá-lo. Horácio então sugeriria salmão. Anastácia responderia que não tinha um gosto acentuado por peixes. Horácio riria e diria que salmão era uma boa cor para as paredes da sala, e não estava convidando-a pra um jantar regado a salmão. Anastácia, mesmo já tendo vivido a mesma situação diversas vezes, riria abertamente e diria que embora vivessem hibernando, não eram ursos pra comerem salmão. Ambos cairiam na gargalhada, pois Anastácia teria adicionado um fato novo aquela conversa. Horácio ficaria feliz, pois compreenderia que um dos dois tinha se preocupado em tornar aquela situação, para ambos prazerosa, mais atraente ainda. 

Anastácia lentamente corria no forno, verificava os biscoitos e absorta em seus próprios pensamentos, não percebia que as notas do piano não eram mais emitidas lá da sala. Ou talvez já tivesse notado, mas no seu subconsciente, Horácio só tinha demorado menos tempo fingindo que afinava o piano já afinadíssimo.
Como ela queria que ele em vez de tentar afinar tocasse qualquer coisa, talvez Villas Lobo. Mas desde que se conheceram, nem ele nem ela, haviam tocado nada para o outro naquele piano que dadas as vezes que era afinado, talvez não houvesse em todo o mundo um piano que emitisse notas mais perfeitas. 

Já havia alguns dias que Anastácia treinava uma composição de Vangelis, um compositor pop, segundo a televisão, no intuito de tocar para Horácio, pois não era justo que ele afinasse tanto o piano sem nunca ouvir música de verdade saindo de suas entranhas. 
Anastácia tinha tantos planos para aquela tarde. Tencionava até em pedir que Horácio ficasse para o jantar. Eram vizinhos e ambos solitários, então, não custava nada se proporcionarem um pouco mais da companhia um do outro. 

Depois do chá pronto, exatamente na medida que Horácio apreciava, enquanto ela preparava a bandeja, sem saber como, ela repara nas flores pintadas nas bordas dos pires; eram cores tão vivas que a fizeram lembrar de sua mocidade, quando corria pelas ruas da cidade apreciando as flores que cresciam nos terrenos baldios. Então lhe ocorreu a caprichosa ideia de colocar uma rosa artificial que tinha no armário no centro da bandeja. Feito isto, ao vislumbrar aquela bandeja colorida que mais parecia uma pintura de "natureza viva", constatou que tinha sido uma ideia muito acertada. Ela sorrio por dentro.

Depois de tudo pronto, Anastácia respirou fundo e se direcionou a sala com mais vida do que de costume. Ao caminhar, ela estranhou o barulho dos seus pés arrastando-se no piso da casa, pois nos dias anteriores, o som do piano suprimia aquele barulho decadente. Eis que ali, ela notou qualquer coisa de diferente... 


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