quinta-feira, 6 de abril de 2017

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo II






Por duas vezes tentei levantar, mas não tive forças. Na terceira, consegui ficar de quatro e me movimentar aos poucos. À volta, o silêncio era aterrador. Eu podia ouvir o barulho das minhas articulações e da minha respiração a cada movimento que fazia. Podia sentir o gosto horrível de terra e sangue na boca e mais o sabor de qualquer outra coisa, que eu desconhecia. A brisa da madrugada atravessava meus ferimentos e me provocava calafrios, mas não dor. Enquanto me arrastava em direção à minha irmã, meus joelhos deram em uma poça de sangue coagulado, mas optei por não desviar. Foi aí que senti, em meio ao sangue, um objeto de textura diferente. Dei a volta, remexi e encontrei algo. Tomei o objeto na mão e apertei com a pouca força que ainda tinha nos músculos. A cada nova imagem que meus olhos se deparavam naquele cenário, era como se se construísse uma redoma ao redor de mim e a realidade se afunilasse. Quando consegui me aproximar de Carina, notei que o que ela segurava era o prendedor de cabelo de Tati. Com aquela cena, a última redoma se impôs, e eu compreendi que a realidade, como a conhecíamos, não existia mais. Diante daquela situação, simplesmente me acomodei na mesma posição de minha irmã, baixei a cabeça e, cansada, desfaleci sentindo um embrulho estranho no estômago.

Mesmo sem querer, despertei depois de algumas horas ao sentir umas mãos tocando o meu rosto. Ao sentir a textura da pele de outra pessoa me tocar, eu gritei tão alto que as redomas em volta se desfizeram. Olhei em volta e revi, agora sob a luz do sol, aquele cenário maldito. Pude ver cada erva daninha deformada pelos nossos corpos, as pegadas que aqueles jovens bonitos e bem vestidos haviam deixado, o sangue, os pedaços de muro com letras de propaganda política. Tudo aquilo ficaria, para sempre, gravado na minha cabeça.

Aquele homem me levou nos braços até uma ambulância e, lá, já se encontrava a minha irmã. Eis que, quando Carina me viu, começou a gritar, desesperadamente, o nome de Tati. Para acalmá-la, disse que Tati estava muito machucada e que havia sido levada às pressas para o hospital. Por alguma razão, passei também a acreditar naquela minha mentira, mentira que teria que ter sido ela a me contar e não o contrário. No hospital, nosso pai já nos esperava e nos acompanhou por todo o percurso até o quarto, sem dizer uma única palavra. Eu também não queria falar, embora aquele silêncio me sufocasse.

Eu não fiquei muito tempo no hospital. Carina, que se encontrava com um corte profundo na cabeça, precisou ficar dois dias. Quando retornava para casa, ao me aproximar da discoteca, fechei os olhos para não ver o último lugar onde nós três tínhamos sorrido de verdade. Quando revi minha casa, senti que não era mais a mesma; aquele azul claro das paredes, que tanto me lembrava o céu, provocou-me náuseas. Até minha mãe não era mais a mesma; tinha uma preocupação excessiva à qual meu espírito independente não estava acostumado. Eu queria que ela me batesse, que brigasse comigo, não que cuidasse de mim. Quando entrei no meu quarto, logo avistei a mochila do Mickey que era da Tati, onde ela tinha trazido sua muda de roupa e sua escova de dentes. A mochila que ela odiava levar para a escola (sua mãe havia comprado pensando que o Mickey era a Minnie, uns quatro anos atrás). Foi ali que percebi que nunca mais a veria, nunca mais nos sentaríamos na calçada, nunca mais brigaríamos por causa de “Bem Me Quer Mal Me Quer” e que jamais assistiríamos “Ghost: Do Outro Lado Da Vida” juntas, na Sessão da Tarde. As lágrimas então desabaram. Rever todos aqueles objetos, ainda sentindo as sensações da noite anterior, me corroía o estômago. Corri pro banheiro para chorar e tentar arrancar, com água e sabão, o cheiro e o gosto daqueles jovens bonitos e bem vestidos, que tanto me repugnavam. Mas ao entrar no banheiro e afrouxar a mão direita para ligar o chuveiro, senti um objeto quase se fundindo à minha pele, tamanha era a força com a qual eu o segurava. Abri a mão devagar e vi que se tratava de uma pulseira de metal, do Palmeiras, com uma inscrição na parte de trás: C. S & A. A. Deixei a pulseira na pia e tomei banho por umas três horas até desistir, pois descobri que aquele cheiro e aquele gosto só sairiam se eu arrancasse minha própria pele. Deitei-me na cama ainda molhada e fiquei imaginando como eu iria enfrentar todas as pessoas que eu conhecia, depois de tudo; como eu iria encarar a escola, meus amigos, a minha irmã e os meus pais, quando fosse possível tocar naquele assunto.

Não nos despedimos de Tati. Seus pais nem mesmo vieram buscar a mochila; talvez fosse melhor assim. Toda vez que a realidade vinha como uma lâmina afiada cortando os meus sonhos, eu sentia um vazio que me dificultava respirar, e um sentimento de culpa me assolava. Entretanto minha irmã, depois que retornou do hospital, parecia lidar com o acontecido de forma diferente: colocava música alta, cantava, corria. Às vezes, chorava. Sempre que eu tentava conversar, ela fingia que eu não existia.

Depois de duas semanas, fomos obrigadas a ir à delegacia tentar fazer o reconhecimento dos suspeitos. Enquanto aguardávamos a hora de ficar cara a cara com os possíveis assassinos de Tati, um jovem, trajando uma camisa do Palmeiras, entrou na sala de espera e uma ira incompreensível se apoderou de mim: eu gritei e pulei no pescoço daquele homem e, sem pensar, arranquei um pedaço da sua orelha, com os dentes...

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9 comentários:

  1. Nossa! Essa história é verdadeira mesmo?

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    1. Boa parte sim! O mundo é cheio de gente cruel

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    2. Nossa !
      tô pasma e não consigo parar de ler

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  2. Estou acompanhando cada capítulo dessa história, não sei o que mas algo me perdeu a essa nostalgia , o mundo e as pessoas são tão cruéis quando querem !

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  3. Nossa, estou acompanhando sua história e estou completamente presa! Gostei bastante da sua escrita, parabéns!!

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  4. Comecei a ler agora pouco mas já estou amando.!

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  5. Nossa q história!!!!muito triste e prende muito a gente !felicidades parabéns

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  6. Eu sigo chocada cm tudo. Parabéns é muito envolvente apesar de triste...

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