domingo, 12 de fevereiro de 2017

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XVII




Passado o tempo necessário, eu retornei pra escola. Justo que passou bem rápido, já que a conversa com Amanda se demonstrou muito agradável. Eu não havia previsto que Amanda fosse uma pessoa tão maravilhosa, de modo que minha amizade com ela foi algo muito natural, embora eu tenha forçado o primeiro encontro. 

Ao chegar ao colégio o sinal já havia tocado, todos os alunos se dirigiam para os ônibus, e os que moravam próximo da escola caminhavam para as suas casas com uma alegria só vista em adolescentes ou em adultos bêbedos. Eu logo de longe avistei Carina inquieta, ao certo a minha espera. Senti-me aliviada por não dá de cara com Jorge Luiz, tão pouco com a namorada dele, pois não sei como reagiria; provavelmente de forma dissimulada e indiferente a tudo que ocorrera naquele dia, pois não haveria outra forma de encarar aqueles calorosos acontecimentos.
Não fui até o portão e esperei que Carina desistisse de me esperar e caminhasse em direção à estrada que dava pra nossa casa. De longe, lá da esquina que dobrava a rua, eu tencionava ver o vulto de Jorge Luiz, não queria que ele me visse, mas eu precisava vê-lo, talvez com a intenção de averiguar se ele estava com a sua atual namorada, que certamente seria a ex muito em breve, mas não o vi. Com certeza ele há tempos que tinha ido embora. Fiquei profundamente decepcionada por ele não ter esperado pra me ver. Estranhamente a gente quer que as pessoas sintam mais falta da gente do que o contrário. Eu havia de certa forma dado um fora em Jorge Luiz mais cedo, mas esperava que ele ficasse feito um cachorrinho faminto a minha espera, e quando constatei que não havia sido do jeito que eu tinha pensando, me bateu uma coisa ruim, uma sensação como se tivesse perdido ele pra sempre. As paixões são de fato uma merda.  
Carina desistiu de me esperar, e decidiu ir sozinha pra casa. Na esquina, eu  a surpreendi com o toca fitas no volume máximo, fato que quase mata ela de susto ao ouvir a voz de Tati na fita. Eu era mesmo louca, não tenho dúvidas.   

- Meu Deus Tati, o que cargas d’águas você faz com esse rádio tocando a voz mórbida de Tati com essa cantiga de ninar assustadora? Enlouqueceu de vez? 

- Eu trouxe pra um trabalho e essa fita tava dentro do suporte por coincidência. Achei que ia gostar de ouvir a voz de nossa querida amiga, já que às vezes parece que você esquece o que aconteceu com ela. 

- Não é que eu esqueça, eu simplesmente escolho não pensar já que não posso fazer nada pra mudar o passado. E nem você também. Espero sinceramente que você não esteja cometendo nenhuma loucura que possa colocar nossa família em perigo. 

- Relaxa. Eu também já estou desencanando dessa história. 
Que mentira mais absurda. Era certo que enquanto eu não me sentisse vingada, enquanto eu não carregasse a certeza que aquele desgraçado pagou pelo que fez, eu não conseguiria respirar, nem minha vida podia continuar normalmente. Não era tão simples pra mim quanto pra ela, mas eu não esperava que ela entendesse. Na verdade, eu que não a entendia, pois qualquer pessoa sensata concluiria que ela estava certa e eu que estava mexendo com fogo, mas eu era egoísta demais pra entendê-la. 

Ao chegarmos ao nosso lar, nossa mãe, como sempre quando nos atrasávamos dois minutos, já nos esperava na calçada e com aquela preocupação excessiva com minha pessoa, ignorando quase a existência de Carina. Antes da noite de 93, Carina era a preferida, a raquítica com problemas alimentares, então todas as atenções de minha mãe eram pra ela, depois que contrai a loucura, ela voltou a sua preocupação excessiva somente pra mim. Confesso que eu tinha inveja de minha irmã por minha mãe só se preocupar a priori por Carina e eu quase nem existir, mas depois eu descobri que eu era privilegiada por não ter os olhos, os chás e os remédios de minha mãe no meu criado mudo o tempo todo. Tudo em demasia sobra, eu sempre amei minha mãe, mas ela precisava entender que eu precisava de espaço, se bem que, sem espaço eu já fazia tudo que fazia, imagine com plena liberdade. É provável que eu colocasse fogo na delegacia. Risos.  

Depois de tomar dois litros de chá e novecentos remédios pras mais variadas doenças e de comer o jantar até o fim, mesmo sem vontade, eu fui para o quarto e foi então que comecei refletir sobre aquele dia frenético. Eu tinha corrido, eu tinha beijado uma garota, eu tinha enfrentado, embora não diretamente, Carlos Salgado... E nessa de refletir, me bateu a realidade: se a namorada de Jorge Luiz havia me procurado pra tirar satisfação no início da tarde, isso queria dizer que ela já sabia do nosso lance. Como eu fui burra! Simples assim: ele tinha terminado com ela de manhã e havia confessado que gostava de mim. Como ele era simples. Foi por isso também que eu não vi os dois juntos na saída do colégio como todos os dias. Só que eu tinha feito merda beijando ela; agora ou ela julgou que eu fosse lésbica, então não me viu mais com uma rival, ou ela também gostou do beijo. Nossa, que loucura. Minha vida tinha que ser mesmo uma desgraça porque eu só fazia bobagem. Essa ideia se fixou na minha cabeça, mas não era somente a situação em si que me intrigava, ter gostado muito daquele beijo também estava me dando nos nervos. 
Beijar uma mulher não era como beijar um homem; ela tinha o cheiro bom, a pele macia e não se impunha a minha pessoa com ar de superioridade como os homens. Beijar uma garota me passou a sensação gostosa de cumplicidade, de igualdade. Talvez eu fosse mesmo lésbica. Tentei tirar aquele absurdo da mente - e pensar em Jorge Luiz funcionou como catalisador da reação.  

Quando me surgiu a ideia de que Jorge tinha já terminado com a sua namorada apostando todas as suas fichas em um relacionamento tempestuoso comigo, eu entrei em desespero. Ele não tinha feito uma boa escolha. Ele era simples, vivia, não tinha questionamentos existenciais, enquanto que eu era um turbilhão de emoções. Em um relacionamento entre duas pessoas diferentes como a gente, das duas uma: ou eu descarrilaria a ordem maravilhosa da vida dele transformando sua existência em um inferno, ou ele me colocava nos eixos. E me conhecendo, não teria como escaparmos da primeira opção. E mesmo, com tudo que eu já havia feito, a segunda opção já podia ser descartada. Maldita seja essa capacidade que eu tenho de pensar em tudo de antemão. Mas o importante é que se eu o tinha perdido quando não o vi na saída da escola, com aquela nova certeza baseada em minhas ilusões, eu o ganhei de novo. Ele tava em minhas mãos. Durante um dia, eu o perdia e ganhava umas duzentas vezes, só me baseando em minhas teorias absurdas. Embora eu tivesse a mais pura certeza que uma hora eu iria perdê-lo de vez e pra sempre. Era um inferno essas minhas reflexões. Se havia uma coisa que eu queria era ser daquelas pessoas que simplesmente deita e dorme; que deixa pra pensar nos problemas à medida que eles se apresentam, mas não era. 

Na manhã seguinte eu não tinha grandes objetivos pra uma corrida, a não ser, encontrar Jorge Luiz por acaso, uma vez que não tínhamos marcado nada, mas não me custava nada tentar. E dito e feito, parecia que ele havia pensando no mesmo ou simplesmente corria ali todo dia. Escolhi pensar que ele havia se direcionado para o mesmo local que iniciamos a corrida na manhã anterior pra me encontrar, assim como eu. A gente escolhe no que acreditar. Ele me abraçou, mas não me beijou, talvez por medo de levar outro fora, e disse:  

- Ontem se você tivesse me dado chance, eu teria te contado que tinha terminado tudo com aquela magricela, como você chama, mas você meio que me obrigou seguir o meu caminho. Eu quero dizer que, mesmo você não gostando de mim tanto quanto eu gosto de você, eu estou disposto a lutar por você, até as últimas consequências. 

Óbvio que ele tinha tirado aquela frase “até as ultimas consequências” de algum filme de artes marciais; ele não teria como saber o que significava aquilo, mas achei bem fofo e resolvi beijá-lo, já que se tratando de amor o tempo sempre é uma desordem e ao mesmo tempo em que sobra nunca é o suficiente, então namoramos um tempo.  Enquanto estava ali com ele, eu resolvi me entregar àqueles sentimentos e deixar pra pensar no futuro quando fosse realmente futuro, embora soubesse que quando deitasse novamente a cabeça no travesseiro, os pensamentos voltassem. Retornei pra casa feliz, ignorando totalmente todos os meus problemas. 

De repente, era meio dia e eu tinha que ir novamente pra escola. Como o tempo voa quando se ama, ou quando se pensa que ama, mas não importa, voa do mesmo jeito. Enquanto caminhava pela estrada de sempre com Carina, senti alguém me seguindo e a cada passo eu sentia que ele se aproximava mais, a ponto de sentir a respiração do perseguidor bufando no meu pescoço. Era aterrorizante. Talvez fosse apenas uma sensação devido a realidade do que eu tinha feito com Carlos Salgado ter se apresentado de fato pra mim somente quando o sol me corou a testa aquela tarde, mas se era um demônio ou qualquer coisa que o valha, me incomodava. E eu não podia demonstrar a Carina o meu medo ridículo baseado em sensações, pelo menos não antes de se confirmar, pois ela concluiria que minha loucura tinha evoluído pra um grau avançado de ver coisas. Não seria nada bom pra mim.   


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