domingo, 23 de julho de 2017

Ninguém



Lembro-me bem da primeira vez que Ninguém bateu a nossa porta. Era uma e quinze da tarde, pediu água, lhe foi oferecido, mas o copo por ele bebido fora descartado para o lixo imediatamente ele dobrou a esquina. Ninguém poderia carregar qualquer doença contagiosa que adicionada ao nosso asco, poderia ser mortal. “ Mas, Dai de beber a quem tem sede.” 
Desde então, ele sempre que passava na estrada, pedia água e depois de beber se ia para algum lugar que certamente há tempos que já devia ter chegado. 
Passadas algumas vezes em que ele sempre repetia o mesmo gesto, ele retorna novamente a nossa porta e como previsto, pediu novamente um copo com água, mas antes que “Alguém” trouxesse, Ninguém retira do bolso seis reais em notas de dois e começa contar e ajeitar as cédulas de inúmeras maneiras sem nunca se dá por satisfeito. Até que água chega, ele pega o copo com a mesma mão que se encontrava as notas, mas depois troca o copo de mão, e finalmente recoloca as notas no bolso. Enquanto bebia, Ninguém abre os olhos e nota o copo da mesma cor das outras vezes, fica em silêncio por alguns segundos, mas nem Ninguém, nem nós admitiríamos o fato que jamais beberíamos da mesma água, ainda que tal ato fosse contrário a nossa fé pregada os quatros ventos. Depois daquela pausa, ele torna a engolir o líquido, mas via-se de longe que mais parecia que ele engolia areia em vez de água. 
Dada à frequência com que ele pedia água, já havia sido separado um copo de plástico barato com o objetivo de que ele sempre bebesse nele, de modo a não contaminar o restante dos copos da casa. 
Depois de beber, Ninguém entrega o copo um tanto cabisbaixo, como se não tivesse matado completamente a sede e sem olhar nos olhos dos supostos “Alguéns”, retira novamente as cédulas do bolso, mas logo recoloca, sem contar ou reorganizá-las como antes. Eis que, diante daquela cena, Ninguém deixa sair da sua boca as palavras mais tristes que outro Ninguém poderia ouvir: Eu nasci sem sorte, sabe? Eu nasci sem sorte. 

Ninguém quis lhe passar uma lição com esse texto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário