domingo, 10 de junho de 2018

Asas de condor


Nasci nu, me vestiram de humanidade, de sociedade, me tornei pomposo, com sonhos reais, sem vida real, me senti ninguém.
Resolvi então me despir de tudo e me tornei alguém, foi quando o mundo me viu um ninguém.
Já não tinha sonhos materiais, não pensava em construir qualquer coisa que não fosse a obra da minha vida.
Não me compreenderam.
Me tornei um pobre coitado, um lobo da estepe;
Uma flor de laranjeira no quintal de casa.
Me compararam a homens de terras, de abelhas, de vargens numa plantação de inverno.
Tudo isso no intuito de me converterem aos objetivos que eles podiam conceber. Falharam.
Eu não havia nascido pra nada de palpável.
"Um boêmio incapaz de construir qualquer coisa.
Morrerá em algum abrigo de algum parente solidário uma vez que não construiu um lugar pra ficar." Diziam eles.
"Que custa um emprego? Uns poucos metros de terra, um carro...?!
Ah! Que custa um sonho real como aumentar esta tal casa, comprar um carro melhor?
Ora, engaiola este maldito sanhaçu que saltita nos pastos verdejantes do teu peito!
Pássaro solto não canta na sala de estar.
Pássaro nos galhos de árvores alheias não enfeitam uma travessa no dia de natal."
Não compreenderam que eu fui me construindo dentro de mim e, naturalmente, deteriorando a minha imagem que o mundo real refletia.
Como se a cada nova convicção baseada em meus sonhos, por assim dizer, impossíveis, fosse retirado mais um adereço do homem suportável, construído a base de sonhos reais, de relações duradouras que eu fui no passado; naquele longínquo passado em que eu ainda permitia que a sociedade me impusesse tutti quanti coubesse a um pedaço de carne que teve o azar de nascer nesta terra.
Não vou dizer que seja fácil o sacrifício.
Me custa não ornar vestes da moda. Me custa não ser um bom pretendente a quem quer que seja. Me custa quando me olham com desprezo ao constatarem que eu nunca serei alguém.
Como se isso dependesse dos olhares deles, e não da minha luta pessoal.
Eles falharam em todas as tentativas de me revestir de sociedade e de anseios comuns novamente. Mas antes a falha deles do que a minha.
Ainda que eu nunca chegue ao final do arco-íris, saibam que eu lutei como pude pra ser alguém. Talvez não o tipo de alguém que mentalizaram, ou que sonharam que eu me tornasse, mas alguém em que eu sei que refletia ao mundo que eu já sou em minhas convicções.

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