Ele abria os olhos todos os dias
às cinco da manhã. Sempre cheio de disposição, não havia necessidade que a mãe o chamasse aos gritos, ou que lhe jogasse água no rosto pra
que ele acordasse de seus sonhos, embora quase sempre os céus tomasse para
si essa tarefa, mesmo não havendo
necessidade. No levantar das pálpebras toda manhã, aquele menino invariavelmente apreciava a mesma cena; a massa cinzenta
acima, as marcas de água, as goteiras, os transeuntes sob os primeiros raios de
sol, ou sob as nuvens também cinzas. Seus ouvidos ouviam sempre os mesmos ruídos; as buzinas, os passos, os
anseios, os gritos e indignações sem sentindo dos que com ele viviam naquele
local. Tudo se repetia, dia após dia, quase sem alterações.
Aquele menino jamais soubera o que era sair ou voltar pra casa. A sua casa tinha quilômetros e quilômetros e ele nem percebia. Ele
nascera naquele local e ali vivia há quase cinco anos, embora na sua imaginação de criança, não passasse de dois dias. Porém, ele convivia com todos os elementos daquele seu lar há tanto tempo que já até adquirira afeto por eles. Tinha uma caixa de papelão que ele apelidara de Fita, tinha uma ratazana grande e bem alimentada que ele chamara de Maria Juana. Vai saber por quê? Maria Juana, como que num gesto automático, sempre que o garotinho deixava sua caixa, ela se aproximava pra buscar restos de alimento. De certa forma, naquele mundo, todo carinho que ele conhecia era de Maria Juana, quando no meio da noite, não aguentando esperar que ele saísse, ela vinha se enroscando em suas pernas sujas, ao certo com fome, e era nesse gesto, que aquele pobre menino experimentava vestígios de tranquilidade; naquele simplório e efêmero momento, ele sentia a sensação de está protegido, de modo que se ajeitava em sua caixa como se estivesse em casa e, proferia aquele sorrisinho que, inconscientemente, toma forma em nosso rosto enquanto dormimos sob o olhar dos pais. Certa vez Maria Juana até tivera filhotes, mas por alguma razão, o nosso garotinho, numa ira incompreensível, matou todos e os enterrou do outro lado da parede cinza, sem sentir remorso algum.
Sabe, até que ele era feliz, mesmo morando embaixo do viaduto, carregava sempre um sorriso largo e uns olhos grandes cheios de vida. Todos na rua o amavam; ele
sempre tinha o que dizer e era de uma simpatia digna de ser explorada, e sua mãe
bem sabia disso. Todos os dias, ele tinha que sair, mesmo que continuasse em
casa, pra pedir coisas às pessoas que carregavam consigo a singela graça de retornar
pra algum lugar. Ele era carismático demais e sujo, de modo que ninguém
conseguia continuar sua jornada sem que lhe agraciasse com algumas moedas. A
mãe dele bem sabia disso.
Certa vez, em um dia iluminado,
ele acordara à hora de sempre, levara alguns tapas, pois ele se negou a sair
pedindo coisas nas ruas sob o argumento que não era justo, pois ele mesmo jamais
pudera comprar um brinquedo sequer com o dinheiro que conseguia. Porém, não conseguindo resistir as pancadas,
foi mesmo assim. Ao chegar ao local estratégico, ele vira um garoto bem
vestido, com uniforme limpo e brasões importantes bordado no peito. O menino se encontrava sozinho e parecia mais
perdido que ele, nosso menino se aproximou e, do nada, iniciou seu monólogo:
- Como é sua casa? Deve ser
bonita. Deve ter tapetes vermelhos como daquela loja grande do outro lado da
rua. Sabe, eu também tenho uma casa muito grande, com tudo que eu preciso;
quartos, paredes, teto e ratos. Você
gosta de ratos? Não deve gostar de ratos, os ricos acham eles nojentos. Mas eles são bem legais e tem
pelo macio. Maria Juana é minha amiga,
mas você não deve querer ouvir falar dela. O nosso herói tinha resposta pra
todas as suas perguntas, logo, o garotinho limpo e cheiroso não tinha que falar
nada e ele considerava isso o paraíso.
- Quer conhecer a minha casa? Eu
sei que quer! – O segurou pela mão e saiu em direção a sua casa. - Que mão
macia- pensou ele.
Ao chegarem, começou ele mostrar ao garotinho limpo o que era o seu lar:
- Aqui é a sala, tem esse sofá,
não se pode sentar nele, mas minha mãe usa pra esconder coisas da polícia, não
sei bem o quê. Ali tem o fogão, não é um grande fogão, eu sei, e também serve mais pra
esquentar o frio que sempre faz a noite, ninguém cozinha nele. A gente costuma
ganhar a comida já pronta. Minha mãe não gosta das pessoas que dão comida, mas
eu gosto. Tá, é um tambor velho, eu sei.
- Ali, é onde os homens dormem,
tem alguns cobertores bem velhos, a gente sempre ganha cobertores novos, mas
minha mãe sempre troca pela mesma coisa que esconde da polícia. -
Seu pai esconde coisas da polícia? Não deve esconder.
- Ali é onde minha mãe deveria
dormir, fica do lado do meu quarto, mas ela quase nunca tá aqui, sempre sai com
uns caras estranhos que aparecem.
- Venha, vamos conhecer meu
quarto. – Aonde vai? Você não tem poderes pra atravessar paredes, tem? Os ricos
têm superpoderes? Devem ter. Você tem que me
seguir, aqui é cheio de paredes invisíveis, se você não prestar atenção acaba batendo
em uma e pode se machucar.
- Veja, aqui é meu quarto. Esta é minha cama, eu chamo ela de fita, é uma palavra que minha mãe
sempre usa. Tem teto e tudo e quando
deito nela, pode até chover, que eu quase nem sinto. Eu me sinto tão
protegido com cheiro de papelão.
- Cuidado! Não levante ela, Maria
Juana deve tá ai dentro e você pode se assustar.
Mas Maria Juana não se encontrava lá.
Os dois garotinhos então, entraram embaixo da caixa de fogão Esmaltec e lá brincaram
por horas. Mas depois de um tempo, a polícia veio buscar o garotinho limpo. Após aquele dia, a
sua mãe também jamais retornara, vai saber por quê!
Pensou ele conformado: "ela deve ter realmente muito que esconder da polícia."
Pensou ele conformado: "ela deve ter realmente muito que esconder da polícia."
Olá!
ResponderExcluirGostei do conto e achei o final um pouco triste e até mesmo irônico, pelo modo como o menino vê toda a situação e como nós a interpretamos.
Parabéns!!
Muito bom o conto, mesmo sendo triste e a realidade de muitas crianças do nosso país.
ResponderExcluirBoutique de Clichês
Nossa o conto é bem triste e bem realista, chega a ser mais triste por que temos uma criança que mesmo na pobreza possui uma grande imaginação e potencial, só que infelizmente, muitas vezes é apagada pela realidade das ruas.
ResponderExcluirBeijos
VIviana