sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Lar doce Lar



Ele abria os olhos todos os dias às cinco da manhã. Sempre cheio de disposição, não havia necessidade que a mãe o chamasse aos gritos, ou que lhe jogasse água no rosto pra que ele acordasse de seus sonhos, embora quase sempre os céus tomasse para si  essa tarefa, mesmo não havendo necessidade. No levantar das pálpebras toda manhã, aquele menino invariavelmente apreciava a mesma cena; a massa cinzenta acima, as marcas de água, as goteiras, os transeuntes sob os primeiros raios de sol, ou sob as nuvens também cinzas. Seus ouvidos ouviam sempre os mesmos ruídos; as buzinas, os passos, os anseios, os gritos e indignações sem sentindo dos que com ele viviam naquele local.  Tudo se repetia, dia após dia, quase sem alterações.        

Aquele menino jamais soubera o que era sair ou voltar pra casa.  A sua casa tinha quilômetros e quilômetros e ele nem percebia. Ele
nascera naquele local e ali vivia há quase cinco anos, embora na sua imaginação de criança, não passasse de dois dias. Porém, ele convivia com todos os elementos daquele seu lar há tanto tempo que já até adquirira afeto por eles. Tinha uma caixa de papelão que ele apelidara de Fita, tinha uma ratazana grande e bem alimentada que ele chamara de Maria Juana. Vai saber por quê? Maria Juana, como que num gesto automático, sempre que o garotinho deixava sua caixa, ela se aproximava pra buscar restos de alimento. De certa forma, naquele mundo, todo carinho que ele conhecia era de Maria Juana, quando no meio da noite, não aguentando esperar que ele saísse,  ela vinha se enroscando em suas pernas sujas, ao certo com fome, e era nesse gesto, que aquele pobre menino experimentava vestígios de tranquilidade; naquele simplório e efêmero momento,  ele sentia a sensação de está protegido, de modo que se ajeitava em sua caixa como se estivesse em casa e, proferia aquele sorrisinho que, inconscientemente, toma forma em nosso rosto enquanto dormimos sob o olhar dos pais.  Certa vez Maria Juana até tivera filhotes, mas por alguma razão, o nosso garotinho, numa ira incompreensível, matou todos e os enterrou do outro lado da parede cinza, sem sentir remorso algum.     

Sabe, até que ele era feliz, mesmo morando embaixo do viaduto, carregava sempre um sorriso largo e uns olhos grandes cheios de vida.  Todos na rua o amavam; ele sempre tinha o que dizer e era de uma simpatia digna de ser explorada, e sua mãe bem sabia disso. Todos os dias, ele tinha que sair, mesmo que continuasse em casa, pra pedir coisas às pessoas que  carregavam consigo a singela graça de retornar pra algum lugar. Ele era carismático demais e sujo, de modo que ninguém conseguia continuar sua jornada sem que lhe agraciasse com algumas moedas. A mãe dele bem sabia disso.    

Certa vez, em um dia iluminado, ele acordara à hora de sempre, levara alguns tapas, pois ele se negou a sair pedindo coisas nas ruas sob o argumento que não era justo, pois ele mesmo jamais pudera comprar um brinquedo sequer com o dinheiro que conseguia.  Porém, não conseguindo resistir as pancadas, foi mesmo assim. Ao chegar ao local estratégico, ele vira um garoto bem vestido, com uniforme limpo e brasões importantes bordado no peito.  O menino se encontrava sozinho e parecia mais perdido que ele, nosso menino se aproximou e, do nada,  iniciou seu monólogo:    

- Como é sua casa? Deve ser bonita. Deve ter tapetes vermelhos como daquela loja grande do outro lado da rua. Sabe, eu também tenho uma casa muito grande, com tudo que eu preciso; quartos, paredes, teto e ratos.  Você gosta de ratos? Não deve gostar de ratos, os ricos acham  eles nojentos. Mas eles são bem legais e tem pelo macio.  Maria Juana é minha amiga, mas você não deve querer ouvir falar dela. O nosso herói tinha resposta pra todas as suas perguntas, logo, o garotinho limpo e cheiroso não tinha que falar nada e ele considerava isso o paraíso.    

- Quer conhecer a minha casa? Eu sei que quer! – O segurou pela mão e saiu em direção a sua casa.   - Que mão macia- pensou ele.                                                                                                    
Ao chegarem, começou ele mostrar ao garotinho limpo  o que era o seu lar:

- Aqui é a sala, tem esse sofá, não se pode sentar nele, mas minha mãe usa pra esconder coisas da polícia, não sei bem o quê. Ali tem o fogão, não é um grande fogão, eu sei,  e também serve mais pra esquentar o frio que sempre faz a noite, ninguém cozinha nele. A gente costuma ganhar a comida já pronta. Minha mãe não gosta das pessoas que dão comida, mas eu gosto.  Tá, é um tambor velho, eu sei.  
- Ali, é onde os homens dormem, tem alguns cobertores bem velhos, a gente sempre ganha cobertores novos, mas minha mãe sempre troca pela mesma coisa que esconde da polícia. - Seu pai esconde coisas da polícia? Não deve esconder. 

- Ali é onde minha mãe deveria dormir, fica do lado do meu quarto, mas ela quase nunca tá aqui, sempre sai com uns caras estranhos que aparecem.   

- Venha, vamos conhecer meu quarto. – Aonde vai? Você não tem poderes pra atravessar paredes, tem? Os ricos têm superpoderes? Devem ter. Você tem que me  seguir, aqui é cheio de paredes invisíveis, se você não prestar atenção acaba batendo em uma e pode se machucar.   

- Veja, aqui é meu quarto.  Esta é minha cama, eu chamo  ela de fita, é uma palavra que minha mãe sempre usa.  Tem teto e tudo e quando deito nela, pode até chover, que eu quase nem sinto. Eu me sinto tão protegido com cheiro de papelão. 
- Cuidado! Não levante ela, Maria Juana deve tá ai dentro e você pode se assustar. 

Mas Maria Juana não se encontrava lá. Os dois garotinhos então, entraram embaixo da caixa de fogão Esmaltec e lá brincaram por horas. Mas depois de um tempo, a polícia veio buscar o garotinho limpo. Após aquele dia, a sua mãe também jamais retornara, vai saber por quê!
Pensou ele conformado: "ela deve ter realmente muito que esconder da polícia."



     

    

3 comentários:

  1. Olá!
    Gostei do conto e achei o final um pouco triste e até mesmo irônico, pelo modo como o menino vê toda a situação e como nós a interpretamos.
    Parabéns!!

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  2. Muito bom o conto, mesmo sendo triste e a realidade de muitas crianças do nosso país.

    Boutique de Clichês

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  3. Nossa o conto é bem triste e bem realista, chega a ser mais triste por que temos uma criança que mesmo na pobreza possui uma grande imaginação e potencial, só que infelizmente, muitas vezes é apagada pela realidade das ruas.

    Beijos

    VIviana

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