quinta-feira, 6 de abril de 2017

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo II






Por duas vezes tentei levantar, mas não tive forças. Na terceira, consegui ficar de quatro e me movimentar aos poucos. À volta, o silêncio era aterrador. Eu podia ouvir o barulho das minhas articulações e da minha respiração a cada movimento que fazia. Podia sentir o gosto horrível de terra e sangue na boca e mais o sabor de qualquer outra coisa, que eu desconhecia. A brisa da madrugada atravessava meus ferimentos e me provocava calafrios, mas não dor. Enquanto me arrastava em direção à minha irmã, meus joelhos deram em uma poça de sangue coagulado, mas optei por não desviar. Foi aí que senti, em meio ao sangue, um objeto de textura diferente. Dei a volta, remexi e encontrei algo. Tomei o objeto na mão e apertei com a pouca força que ainda tinha nos músculos. A cada nova imagem que meus olhos se deparavam naquele cenário, era como se se construísse uma redoma ao redor de mim e a realidade se afunilasse. Quando consegui me aproximar de Carina, notei que o que ela segurava era o prendedor de cabelo de Tati. Com aquela cena, a última redoma se impôs, e eu compreendi que a realidade, como a conhecíamos, não existia mais. Diante daquela situação, simplesmente me acomodei na mesma posição de minha irmã, baixei a cabeça e, cansada, desfaleci sentindo um embrulho estranho no estômago.

Mesmo sem querer, despertei depois de algumas horas ao sentir umas mãos tocando o meu rosto. Ao sentir a textura da pele de outra pessoa me tocar, eu gritei tão alto que as redomas em volta se desfizeram. Olhei em volta e revi, agora sob a luz do sol, aquele cenário maldito. Pude ver cada erva daninha deformada pelos nossos corpos, as pegadas que aqueles jovens bonitos e bem vestidos haviam deixado, o sangue, os pedaços de muro com letras de propaganda política. Tudo aquilo ficaria, para sempre, gravado na minha cabeça.

Aquele homem me levou nos braços até uma ambulância e, lá, já se encontrava a minha irmã. Eis que, quando Carina me viu, começou a gritar, desesperadamente, o nome de Tati. Para acalmá-la, disse que Tati estava muito machucada e que havia sido levada às pressas para o hospital. Por alguma razão, passei também a acreditar naquela minha mentira, mentira que teria que ter sido ela a me contar e não o contrário. No hospital, nosso pai já nos esperava e nos acompanhou por todo o percurso até o quarto, sem dizer uma única palavra. Eu também não queria falar, embora aquele silêncio me sufocasse.

Eu não fiquei muito tempo no hospital. Carina, que se encontrava com um corte profundo na cabeça, precisou ficar dois dias. Quando retornava para casa, ao me aproximar da discoteca, fechei os olhos para não ver o último lugar onde nós três tínhamos sorrido de verdade. Quando revi minha casa, senti que não era mais a mesma; aquele azul claro das paredes, que tanto me lembrava o céu, provocou-me náuseas. Até minha mãe não era mais a mesma; tinha uma preocupação excessiva à qual meu espírito independente não estava acostumado. Eu queria que ela me batesse, que brigasse comigo, não que cuidasse de mim. Quando entrei no meu quarto, logo avistei a mochila do Mickey que era da Tati, onde ela tinha trazido sua muda de roupa e sua escova de dentes. A mochila que ela odiava levar para a escola (sua mãe havia comprado pensando que o Mickey era a Minnie, uns quatro anos atrás). Foi ali que percebi que nunca mais a veria, nunca mais nos sentaríamos na calçada, nunca mais brigaríamos por causa de “Bem Me Quer Mal Me Quer” e que jamais assistiríamos “Ghost: Do Outro Lado Da Vida” juntas, na Sessão da Tarde. As lágrimas então desabaram. Rever todos aqueles objetos, ainda sentindo as sensações da noite anterior, me corroía o estômago. Corri pro banheiro para chorar e tentar arrancar, com água e sabão, o cheiro e o gosto daqueles jovens bonitos e bem vestidos, que tanto me repugnavam. Mas ao entrar no banheiro e afrouxar a mão direita para ligar o chuveiro, senti um objeto quase se fundindo à minha pele, tamanha era a força com a qual eu o segurava. Abri a mão devagar e vi que se tratava de uma pulseira de metal, do Palmeiras, com uma inscrição na parte de trás: C. S & A. A. Deixei a pulseira na pia e tomei banho por umas três horas até desistir, pois descobri que aquele cheiro e aquele gosto só sairiam se eu arrancasse minha própria pele. Deitei-me na cama ainda molhada e fiquei imaginando como eu iria enfrentar todas as pessoas que eu conhecia, depois de tudo; como eu iria encarar a escola, meus amigos, a minha irmã e os meus pais, quando fosse possível tocar naquele assunto.

Não nos despedimos de Tati. Seus pais nem mesmo vieram buscar a mochila; talvez fosse melhor assim. Toda vez que a realidade vinha como uma lâmina afiada cortando os meus sonhos, eu sentia um vazio que me dificultava respirar, e um sentimento de culpa me assolava. Entretanto minha irmã, depois que retornou do hospital, parecia lidar com o acontecido de forma diferente: colocava música alta, cantava, corria. Às vezes, chorava. Sempre que eu tentava conversar, ela fingia que eu não existia.

Depois de duas semanas, fomos obrigadas a ir à delegacia tentar fazer o reconhecimento dos suspeitos. Enquanto aguardávamos a hora de ficar cara a cara com os possíveis assassinos de Tati, um jovem, trajando uma camisa do Palmeiras, entrou na sala de espera e uma ira incompreensível se apoderou de mim: eu gritei e pulei no pescoço daquele homem e, sem pensar, arranquei um pedaço da sua orelha, com os dentes...

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Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo III







Foi um alvoroço; também, pudera: avancei como uma louca sobre aquele homem e, mesmo que tentasse me conter, não conseguiria. Carina, como normalmente reagia em situações de estresse, ficou aturdida, paralisada, mas parecia me entender. Fui prontamente imobilizada por um guarda barrigudo, o que impediu, talvez, que eu arrancasse bem mais que um pedaço daquela orelha suculenta. Infelizmente, o rapaz bonito e bem vestido era filho do delegado e, claro, me julgou maluca. O delegado então, sem escolhas diante dos fatos e do depoimento do filho, me julgou incapaz de conviver em harmonia com a sociedade e, no ato, expediu uma ordem para que eu fosse mantida numa dessas instituições para malucos. Meu pai, sem saber como explicar nada, apenas sentou-se na cadeira em frente ao bebedouro e ficou contando os pingos de água que caiam devido a algum defeito na torneira. Não foi possível mais o reconhecimento dos suspeitos e talvez não precisasse...

Diante de tudo que havia acontecido nos últimos dias, eu já perdia as forças. Era como se eu fosse uma marionete dos efeitos daquela maldita noite e nada pudesse fazer; nem fugir, nem enfrentar, apenas deixar que o inevitável fosse me moldando a seu bel prazer. Eu tinha quase treze anos, meu mundo tinha desmoronado e a vida comum parecia ser impossível. Então, assim como desfaleci ao lado de Carina naquela noite, desabei no piso frio da delegacia e, sem forças, aceitei meu destino.

Algumas pessoas, depois que tomaram conhecimento da cena na delegacia, duvidaram se realmente nós tínhamos sido violentadas. Eu tive a “honra” de ouvir uma vizinha dizer: "quem sabe não foram elas mesmas que quiseram dar para eles? Foram se meter com desconhecidos, deu no que deu". Quis matá-la, mas me contive.

Passaram-se uns dias antes que eu fosse definitivamente para aquele lugar que todos meus conhecidos chamavam de Manicômio. A verdade é que, depois de um tempo, eu realmente queria ir. Minha mãe acreditava piamente que eu já não existia como antes, e alegava que tudo que eu fazia era culpa do meu problema. “Era tudo culpa do meu problema”! Nada me doía mais do que não ser normal. De tanto ouvir aquilo, eu estava a um passo de me convencer que era, realmente, uma louca. Quando vieram me buscar para a reclusão, até fiquei contente, por não precisar mais ver ninguém que desconfiasse da minha loucura. No manicômio, todos teriam certeza dela.

Eu passei quase dois anos reclusa, tempo que ninguém previra. O problema era que a psicóloga queria por força que eu escondesse alguma coisa, que houvesse algo mais sombrio em mim e que eu não revelara, a fim de proteger o meu cérebro de um trauma maior. Mas não havia. Eu relatava tudo o que me lembrava daquele dia, nos mínimos detalhes, mas ela nunca se dava por satisfeita. Sempre dizia: “procure se lembrar de algo, um detalhe que você ou sua irmã não queiram que seus pais saibam; algo que a tortura, que a remeta à culpa”. Mas não havia. Nós tínhamos entrado em um carro com estranhos, eles nos levaram àquele terreno baldio e fizeram coisas horríveis, e era só. Bem, o fato de ter-me envolvido em dezenove brigas com os outros internos durante esses dois anos, também não ajudou muito para que eu recebesse alta. Eu até gostava da solidão de lá e, desde que eu pudesse ouvir Bryan Adams, o lugar onde eu me estivesse era pouco importante.

Nesses quase dois anos, meu pai ia me visitar, mas não conversava muito. Minha mãe me levava bolos, balas, remédios e fazia questão de dizer que as brigas não eram culpa minha, mas, sim, do meu problema. O que mais me indignava, porém, era não poder provar que não era louca e, não conseguindo, a alternativa que me restava era agir como tal. Dei a todos o que todos queriam desde o início: - A certeza da minha loucura.

Eu não atrasei na escola por conta da casa de bobos (é como eu chamava); lá eu estudava e minhas notas eram altíssimas, pois minhas distrações eram as brigas e nem sempre eu podia forçar uma. Sem contar que eu não tive que encarar nenhum colega de turma me perguntado sobre aquele dia, nem as fofocas, nem ninguém. Presa ali, eu “tava” livre de todos os problemas normais da adolescência: não me apaixonava, não sofria. Embora não me sentisse feliz, pouco me importava. Eu, definitivamente, achei que aquele manicômio fosse o meu lugar. Conclui o ensino fundamental, e, em novembro de 1994, recebi alta: havia conseguido a proeza de passar três meses sem conseguir forçar nenhuma briga.

Ao retornar para casa, descobri que simplesmente odiava tudo; mas não era tudo o que me lembrasse do verão de 93, era tudo, tudo mesmo, naquela casa. Odiei o quadro da seleção brasileira na parede da sala, agora pintada de amarelo. Odiei o toca fitas que substituíra a vitrola que eu tanto amava. Repugnei o relógio estupidamente redondo, na parede. Odiei a toalha da mesa, os adesivos do Zé Carioca na geladeira que já ostentava uns vinte anos. Odiei o bolo de laranja servido em comemoração à minha chegada. A minha boneca, ridiculamente vestida de Paquita da Xuxa, me pareceu tão idiota que quis destroçá-la nos dentes. Quis queimar todas aquelas minhas coisas cor de rosa, do passado A coleção de gibis da turma da Mônica e a os discos do Bryan Adams eram as únicas coisas que eu ainda suportava ali.

Minha irmã, mesmo após dois anos, não conseguia olhar nos meus olhos, nem ultrapassava o limite de duas palavras numa conversa. Nada me agradaria mais que conversar com ela (não só sobre aquele fatídico dia), mas sobre tudo; ela parecia não compartilhar do mesmo sentimento. Um abraço apertado que fosse, mas nem isso.

Depois de alguns dias em casa, descobri que todos da cidade me chamavam de louca e que as crianças tinham mais medo de mim que do bicho papão. Era uma cidade pequena, as pessoas tinham elevado tanto o acontecido na delegacia que a minha fama beirava a de Hannibal Lecter. Ouvi estórias a respeito da noite de 93 e da minha estadia no manicômio, tão absurdas, que até me faziam rir. Corriam boatos de que eu tinha engravidado do agressor, e abortado pouco tempo depois. Diziam que no manicômio eu tinha comido uma mão inteira de uma interna, e muitas outras estórias. Se Carina conseguisse me encarar, se ela fosse a mesma de quando dividíamos o sorvete, de quando fazíamos tranças no cabelo uma da outra, certamente riríamos muito daqueles boatos insanos, mas ela não era mais a mesma. Estranheza senti também foi pelo fato de que, passados dois anos, numa cidade pequena como aquela, sequer terem encontrado pistas dos assassinos de Tati. 

Importava que, naquele momento, eu me encontrava livre das paredes do manicômio, e uma coisa era certa: saí bem mais maluca que quando entrei. Livre, eu olhava aquela pulseira do Palmeiras (não a perdi de vista um segundo sequer, desde que a encontrei), e vivia as típicas utopias de adolescentes: - Aqueles bandidos de merda iriam conhecer quem era Valquíria Deodato de Sousa! Sempre que pensava em vingança, uma lágrima de sangue era expelida dos meus grandes olhos de quase quinze anos.

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Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo IV





Eu tinha passado quase dois anos longe de todos que eu conhecia - e se tinha uma coisa que eu gostaria era de explorar, de rever tudo daquela cidade, embora odiasse. Eu precisava ver o mundo; era jovem e tinha ânsia por viver. Porém tinha “o meu problema”, minha mãe não permitia que eu me afastasse dos seus olhos. A verdade que ficar presa em casa não ajudava em nada, pois tinha dias que, inevitavelmente as lembranças me surgiam e transcorria pelo meu corpo um desejo incontrolável em conjunto com pensamentos impuros, segundo minha concepção, - e aquilo não me fazia bem; não era como quando via um garoto bonito na escola e sentia qualquer coisa no estômago. Era diferente. Quando essa sensação passava, era como se eu tivesse sido violentada há poucos minutos e por mim mesma. Então aquele maldito embrulho no estômago voltava e eu sentia vontade de arrancar a minha pele e correr em carne viva até onde não conseguisse mais, pra que o vento e o suor arrancassem aquelas depravações dos meus pensamentos e do meu corpo de uma vez. 

Um dia, aproveitando que minha mãe tirava a cesta da tarde, eu consegui fugir para rua e vendo-me livre eu corri e corri; eu via o dia, via as pessoas e corria.  Vi o vendedor de algodão doce, vislumbrei três garotas que caminhavam aparentemente sem destino, somente caminhavam e aquilo me fez um bem danado. Eu precisava de mais daquela sensação, então corri o mais rápido que consegui. Eu queria me desmanchar completamente em suor, simplesmente me diluir, pois não merecia o mundo com aqueles pensamentos povoando minha mente cristã. Eu corri tanto que chegou a noite e eu não percebi. Mas não corri o suficiente pra não saber onde estava, de modo que encontrar o caminho de volta foi fácil. Ao me aproximar da minha casa, me deparei com o carro da polícia na porta. Eu não procurei me esconder, simplesmente entrei como se eu tivesse saído pra uma corrida normal. Minha mãe, no entanto, imediatamente me viu, enquanto chorava inconsolada, me abraçou, mas logo ficou embaraçada ao ver que tinha incomodado a polícia à toa.  

O policial que havia atendido o chamado desesperado de minha mãe, por razões que conhecemos bem, não tinha parte da orelha esquerda. Quando ele me viu me olhou com um olhar de espanto, mas não tive certeza se me reconheceu, pois em dois anos eu tinha mudado bastante. Mas depois pensei que qualquer mulher que arrancasse um pedaço de um homem como eu havia feito, ainda que ela tivesse oitenta anos, seria reconhecida por ele.

Ele ficou um tempo sem falar nada, olhando pra minha barriga suada devido à corrida. Minha mãe estranhou, eu, no entanto, não estranhei nada. Mas eu também o olhava, mas não para os seus olhos lindos, nem para aquela pose de superioridade dele, eu olhava para o nome bordado na sua farda: C. Salgado, A+. Na noite de 93 eu não tinha conseguido ver o rosto de nenhum dos rapazes, não ao ponto de formar uma imagem nítida, mas aquela pulseira e a minha ira incompreensível na delegacia, talvez não fosse completamente loucura. Sem contar que era tudo que eu tinha. Eu precisava me apegar a todas as possibilidades, isso se eu quisesse encontrar os desgraçados que fizeram aquela barbárie com a gente, já que a polícia não iria fazer nada. Ele até se encontrava irritado antes de eu chegar, ouvi-o dizendo que não incomodassem a polícia com bobagens, mas depois de me ver e aparentemente apreciar o quanto eu estava crescida, ele tornou-se simpático e prestativo, deixando seu número pessoal pra que ligássemos em caso de emergência. Eu confesso que não identifiquei de cara qual era as intenções daquele rapaz. Minha mãe, porém, instintiva como era, percebeu logo que ele estava flertando comigo, mas talvez ela tenha se enganado.

Depois que o policial se foi, nem meu pai nem minha mãe brigaram comigo, nem mesmo citaram o meu problema. Eu juro que queria que eles tomassem um cinto e me desse umas boas chibatadas, mas minha mãe só me preparou um chá.  

O chá eu tomei só pra agradar minha mãe, sabendo que não surtiria efeito algum, mas aquela corrida tinha realmente me feito muito bem. Eu me sentia leve, livre, como se pudesse abraçar o mundo novamente. Depois de um banho me deitei, coloquei Bryan Adams, mas o som da fita cassete não me agradou, porém era Bryan Adams e pouco me importei. Com a tranquilidade que a música e a corrida me propiciava, as ideias começaram fluir e tudo começou fazer sentindo:  Pensei que se os rapazes da noite de 93 fossem policiais, e mesmo que não fossem, e o filho do delegado fosse um dos quatro, o fato do crime nunca ter sido investigado estava completamente explicado. O pai daquele jovem que não podia mais usar brincos devia ser o poderoso chefão da polícia Civil e não iria deixar mesmo que o nome da sua família fosse manchado com um crime tão bárbaro. Ter lido bastante romances policiais no manicômio fomentou muito essas ideias, bem como alimentou o meu desejo de vingança que a cada dia crescia mais.       

O problema de todas aquelas ideias que surgiam na minha cabeça era exatamente “o meu problema”. Eu tinha sido convencida que era louca, logo, me surgiam às dúvidas: e se eu tivesse inventado toda aquela história? Se aquela pulseira não fosse de nenhum dos bandidos e sim de algum idiota qualquer? Mas as inicias não poderiam ser provas maiores. Sem bem que o C na farda poderia ser de Cabo Salgado e não Carlos Salgado como eu pensava. Talvez eu realmente estivesse me tornando paranoica e toda aquela trama tinha sido meu cérebro que havia criado pra que eu não sofresse tanto com a impunidade dos marginais. Aquelas ideias me torturavam em demasia e se eu fosse mais fraca, talvez elas houvessem realmente me levado à loucura total, se é que eu já não era. Sendo loucura ou não, eu precisava  investigar a fundo pra que não me restasse dúvida.
Mas ai, envolvida por Heaven na voz de veludo de Bryan Adams, eu me esquecia de tudo e até conseguia sorrir comigo mesma e dormir tranquila.
Apesar dos fatos expressarem que eu era uma adolescente depressiva, a verdade era que eu vivia muitos momentos felizes. Quando tinha que chorar eu chorava, mas quando tinha a oportunidade de sorrir, por menor que fosse, eu agarrava com unhas e dentes e sorria com toda felicidade do mundo. A gente escolhe como viver e, às vezes, até escolhemos o que sentir, basta conhecermos nós mesmos o suficiente.








Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo VII








- Você precisa saber que nós te usamos. - Disse Carina com um semblante irreconhecível. - O paquera de Tati não deu bolo nela àquela noite. Sempre foram eles. Na verdade, no dia vieram mais dois desconhecidos que não contávamos, mas não importa.

Tínhamos conhecido eles há poucos dias e havíamos marcado de dá uma volta de carro. Tati tava apaixonada por um deles e me implorou pra que eu a acompanhasse, mas eu disse que eu só poderia ir se você fosse junto, pois nossos pais não permitiriam que eu saísse sozinha à noite. Julgamos que não teria problema, desde que não lhe contasse com antecedência os nossos planos. Nós fizemos isso diversas vezes, você como irmã mais nova, nunca soube de muita coisa. A verdade é que a maioria das lembranças que você tem daquela noite foi sua mente que criou. Eram realmente quatro rapazes, mas pouco tempo depois, o mais bonito dos quatro deixou três deles em suas casas, prometendo que ia nos trazer de volta, só que não foi isso que ele fez. O desgraçado nos drogou com uma bebida batizada e, a partir dali, eu também não lembro mais de nada. Tudo foi culpa minha que concordei com aquela ideia absurda.

Ao ouvir aquela confissão, eu compreendi que poderia ter sido eu a ter morrido aquela noite. Diante da possibilidade real da morte, não sei por que, pensei em um besouro de tamanho médio revolvendo a terra úmida abaixo da minha mão cadavérica fazendo com que meu dedo indicador reagisse como se eu tentasse voltar à vida, mas era só uma ilusão. De repente a imagem repulsiva de moscas entrando e saindo da minha boca ignorando totalmente quem um dia eu fui, não saía mais da minha cabeça. Aquela ideia me causou calafrios, mas voltei a mim e questionei:

- Então você conhece quem é o desgraçado? E por que você não contou depois pra polícia, ou mesmo pra os outros três? Talvez eles ajudassem!

- Eu não conhecia, tinha visto ele também a primeira vez aquela noite. Eu tinha intenção de contar tudo pra polícia naquele dia que fomos à delegacia, mas aí, não sei como, você reconheceu o desgraçado na sala de espera e arrancou um pedaço da orelha dele. Talvez ele tenha ido lá exatamente pra verificar se nós o reconhecíamos ou mesmo pra nos amedrontar. Mas diante do alvoroço eu não tive coragem de contar e também porque descobrimos que ele era filho do delegado, seria complicado demais. Mesmo assim, ainda pensava em contar tudo, mas ele passou a me ameaçar que se caso eu contasse, nos mataria como fez com Tati. Eu não suportaria ser responsável pela morte de minha irmã. Eu disse pra ele diversas vezes, mesmo depois que ele se tornou policial, que você não se lembrava de nada e que naquele dia você tinha tido um flash de memória, mas nada concreto. Ele se acalmou por um tempo. Sem contar que ele sabendo que com sua estadia no manicômio, ninguém acreditaria caso você o denunciasse. Ali, ele matou dois coelhos com uma cajadada só. Mas ai, no dia que você fugiu, por azar, foi ele quem atendeu o chamado de emergência de minha mãe, então viu essa maldita pulseira que você não larga, então percebeu que você tinha provas contra ele, ou coisa parecida. Creio que ele deixou o telefone justamente pra quando você fugisse de novo, ele fosse ao seu encalço pra cometer mais um assassinato. Você entende Val, que se eu contasse toda a nossa família estaria em perigo? Sem contar que

ele poderia alegar que estávamos loucas, e com certeza, o pai dele acreditaria. E mesmo que não, não iria prender o próprio filho, mal encarado como é aquele desgraçado.

- Mas Carina, você não tem culpa de nada. Nós éramos apenas crianças, ainda somos. Vocês foram enganadas por aqueles rapazes bonitos. Você devia ter me contado, eu teria entendido. Eu senti tanto sua falta. Eu queria tanto que você conversasse comigo. A gente poderia ter enfrentado juntas, tinha sido tudo tão mais fácil.

- Eu tive medo que você surtasse e fizesse alguma besteira quando descobrisse que fizemos tudo aquilo de caso pensado, sem contar que eu estava sendo constantemente ameaçada. Sabe aquele carro que tentou nos atropelar? Tenho certeza que foi o desgraçado tentado mais uma vez a queima de arquivos. Quando ele percebeu que você não iria fugir mais, ele não suportou a pressão e quis acabar com tudo. Ele queria me obrigar a tomar a pulseira de você e entregá-lo, mas você não larga ela por nada nesse mundo. No entanto, quando presenciei de perto o que todos estavam fazendo com você no colégio, a sua briga, eu não consegui suportar a dor de vê-la sofrendo tanto por conta de um erro meu. Você tem noção o quão duro tem sido pra mim a culpa pela morte de Tati? Sim, a culpa é minha, pois eu devia ter impedido. Mas a verdade é que eu também queria muito passear de carro e isso me tortura desde então. Tati era tão cheia de vida, só era inconsequente, mas nós também éramos.

- Não se culpe tanto! – Eu tentava consolar Carina, embora chorasse mais que ela. - A culpa é toda daquele desgraçado. Mas juntas nós podemos impedir que ele nunca mais destrua a vida de ninguém. Sem contar que ele precisa pagar e você sabe disso.

- Mas como faremos isso? O desgraçado é protegido pelo pai, pelo sistema, já que ele é que é a lei. Estamos de mãos atadas e te contar isso talvez tenha nos condenado de vez, portanto, não faça nada.

- Não! Você está subestimando a capacidade de duas irmãs trabalhando juntas. Ele pensa que pode usar a loucura contra nós, mas nós podemos virar o jogo e usar o nosso “problema” contra ele. Assim como planejávamos fugas simples no passado, nós vamos pensar em algo pra esmagar os ovos daquele miserável. Enquanto eu dizia aquilo, Carina chorava desconsolada, mas eu sei que ela tirara um peso das costas. Eu, no entanto, não senti que tinha tirado uma tonelada das costas, senti que ela ainda descia vagarosamente usando como degrau cada vértebra, cada ponto do meu corpo a cada nova palavra que Carina proferia. Aquele peso maldito descia do meu corpo rumo às profundezas arrancando consigo a véu negro que eu amargava no olhar, nas minhas artérias e veias, na minha carne. Foi com dor, óbvio, mas eu precisava sentir aquela dor.

O alívio daquela conversa com Carina não é possível que eu descreva com maestria, pois transcende o campo real e vai além, naquela ponte viva que se constrói entre duas pessoas que crescem juntas. Mas alivio de verdade eu senti ao perceber que aquela trama que minha cabeça havia criado era plausível. Então eu me dei conta que eu não tinha nada de doida e que eu nunca tinha agido com mais sensatez do que quando havia arrancado a orelha daquele desgraçado. Eu, que tinha me sentindo "tantas vezes reles, tantas vezes vil," senti que finalmente existia.

Depois do acontecido, eu nunca mais tinha experimentado a sensação de ter razão, pois o mundo a minha volta não permitia, mas com as confissões de Carina, eu senti que

ainda tinha chance. Compreendi que meus atos de loucura, não eram, senão, sensatos. Nem todos, claro, não posso também me justificar por tudo. Havia vezes que eu me aproveitava do "meu problema" pra esmurrar alguém que eu sempre tive vontade, como quando eu esfreguei a cara daquela magricela no vaso estragando uma linda bromélia. Afinal, o problema era meu, logo, eu podia muito bem tirar a vantagem que bem entendesse dele.

Nós viramos a noite conversando, colocando o papo em dia, sendo irmãs, sendo cúmplices, sendo gente. Nunca nos faltava assunto, nem antes da noite de 93, e naquela noite eu descobri que nem depois. Óbvio que ainda tinha muitas lacunas que precisavam ser preenchidas, mas optamos por conversar sobre coisas boas e normais e esquecer um pouco das coisas ruins. Carina me contou até que tinha um namorado, eu fiquei bem feliz, embora nossos pais não pudessem ficar sabendo, jamais...






segunda-feira, 3 de abril de 2017

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo VIII









O mais estranho de tudo que Carina havia confessado, era o fato dos outros três rapazes não terem desconfiado do bendito filho do delegado sobre o que aconteceu com a gente. Qualquer idiota juntaria os fatos e concluía que ele era o culpado, já que aquele crime foi por muito tempo assunto principal na cidade. Ou eles estavam protegendo o amigo, ou também estavam sendo enganados, mas não era possível que eles não ficassem curiosos a respeito. Aquela história estava mal contada, ainda tinha muita coisa que eu não sabia, mas Carina talvez não tivesse pensado nesses por menores, ou, ela ainda estava me escondendo muita coisa, sei que pra me proteger, mas se tivesse eu precisava saber. O problema é que ela sendo a mais velha, eu tinha pouca autoridade sobre ela e não tinha coragem de perguntar; e também, depois daquela nossa conversa esclarecedora no quarto, ela simplesmente nunca mais tocou no assunto e eu relevei, pois estava vivendo um momento tão feliz que até meu desejo de vingança tinha desaparecido, embora não pra sempre.

Os dias se passaram, a vida escolar estava bem normal, a caminhada até a escola, no entanto, tinha muito mais graça, pois eu e Carina conversávamos o percurso inteiro. Ela me falava do seu namorado incrível, embora eu não pudesse conhecer, por questões de logística ou coisa parecida. Eu tava crente que ia conseguir levar uma vida perfeitamente normal, sem surtos de raiva, sem desejos de vingança. Até os sonhos horríveis tinham se esvaído pra qualquer lugar que eu prefiro não comentar. Parecia que minha vida estava finalmente entrando nos eixos, mas uma vez ferida, a cicatriz sempre estará lá pra doer nos dias frios - e foi o que aconteceu.

No meu aniversário de quinze anos, eu acordei diferente, como se eu carregasse no meu corpo bem mais demônios do que o normal. Eu me sentia cheia, estressada, não suportando sequer a voz da minha mãe. Parecia que tudo tinha voltado. Eu passei a manhã inquieta, como se algo me incomodasse, porém, apesar de eu saber o que era, esse algo não tomava forma; era um demônio sem forma e sem nome. E o pior de tudo é que os meus afazeres do cotidiano é que era o inferno. Não tive paciência pra tomar banho, colocar meu uniforme, ir à escola, mesmo assim, fiz tudo isso. Na estrada pra escola, a cada passo que eu dava, eu sentia que minha inquietude se intensificava e os pensamentos mais sombrios alimentavam aquele demônio tornando-o mais forte a cada segundo.

Na sala de aula, nem mesmo a cadeira parecia que me cabia e também a ideia de ficar sentada não me agradava. Já na primeira aula, pedi licença pra ir ao banheiro, pois eu sentia que toda energia do meu corpo convergia pra um único ponto - e eu ia explodir a qualquer momento. Em vez de entrar no banheiro feminino, algo mais forte do que eu me direcionou para o banheiro masculino. Lá, um menino magricelo, com um uniforme pouco higiênico e o rosto cheio de espinhas fazia xixi. Ele me olhou assustado, mas ficou parado. Sem controle dos meus atos, eu agarrei no seu membro e comecei esfregar nas minhas partes intimas, como se aquilo fosse exorcizar o demônio em mim. Aquele menino pouco belo parecia que carregava o mesmo demônio em si e arrancou minha calça, levantou minha blusa e começou me lamber como um animal feroz. Eu, mesmo provocando aquilo, não buscava entender, não havia espaço em mim pra reflexão alguma. Então ali, em cima do vazo, fizemos sexo de forma brutal e rápida.

Depois, eu simplesmente saí do banheiro arrependida como nunca, com nojo de mim, com nojo daquele garoto idiota, com nojo daquela escola, da minha cadeira, de todo mundo. Eu não ia suportar voltar pra sala e olhar para aquelas pessoas com mais aquele pecado nos ombros. Na verdade, se eu pudesse simplesmente nunca mais ver ou retornar em qualquer lugar que eu estive naquele dia que antecedera aquela loucura, eu faria de bom grado. Eu tinha nojo de homens, de sexo, de tudo, mas havia dias que aqueles demônios se apoderavam de mim e me controlavam.

Mas eu tive que voltar para sala e era tudo diferente; o erro estava escrito nos meus olhos de arrependida. Quando me acalmei, a preocupação de que aquele moleque que certamente nunca tinha visto uma mulher na vida contasse pra alguém e a escola inteira ficasse sabendo, me parecia mais perturbadora do que o ato em si. Pronto, o restante daquela tarde foi uma tortura, pois além do receio, eu sentia uma necessidade enorme de correr para casa e tomar um banho de sal, de água quente, de qualquer coisa pra tirar todos os vestígios de mim daquele dia horrível. Ao refletir sobre tudo, eu me dei conta que havia perdido, talvez pra sempre, a beleza e a inocência das paixões da infância, dos amores do início da adolescência. Eu tinha perdido toda a poesia do amor, só me restava aquele desejo visceral, animal, que não me fazia bem. Se ao menos eu soubesse que sexo era natural, talvez tivesse sofrido menos.

Quando finalmente o sinal tocou pra sairmos, eu tentei correr pra fora o mais rápido que pude de modo a não encontrar aquele garoto horroroso na saída, mas foi inevitável; ele estava no portão com um sorriso que eu juro que eu se eu tivesse com uma lâmina bem afiada nas mãos, eu tinha simplesmente arrancado aquele sorriso da cara dele sem remorso algum. Se fosse fácil matar as pessoas, ele seria minha segunda opção. Eu baixei a cabeça envergonhada e passei por ele, mas ele ainda teve a audácia de pegar na minha barriga. Que filho da puta! Logo me enchi de ódio e pensei que todos os homens são realmente idiotas execráveis. Se antes eu já amargava um ódio pela raça, ali, se completou a minha aversão profunda. Quando tive consciência daquelas ideias absurdas que pairavam meus pensamentos, eu compreendi que se eu tinha alguma dúvida quanto ao fato de que era uma psicopata, já não tinha mais.

Justo no dia dos meus quinze anos, em que eu devia comprar um vestido de princesa, dançar com um príncipe galante e receber presentes de pessoas que me amavam, eu fiz a maior besteira da minha vida. Também não ia ter festa, e mesmo que tivesse, eu certamente não iria conseguir comemorar, já que carregava o maior pecado dos homens me corroendo por dentro. Eu me sentia a pior vadia do planeta e minha ida para o inferno era tão certa quanto o amanhã que se levanta. Mas a tarde passou, demorou um século, mas passou.

Quando cheguei a casa eu corri para o banheiro e lá tomei banho por mais de uma hora. Minha mãe já estava acostumada com meus banhos demorados, e quando eu sai, se encontrava meu pai, minha irmã, minha mãe, com um bolo bonito com o meu nome escrito em cima como se fosse o ordem e progresso da nossa bandeira nacional. Quando presenciei o sorriso de minha mãe e seus olhinhos lacrimejando de felicidade, eu simplesmente desandei a chorar. Apesar de tudo, minha mãe tinha o poder de fazer me sentir melhor. Então, como toda debutante, Carina tinha conseguido um vestido rosa bonito, eu odiava a cor, mas naquela noite abri uma exceção. Eu usei aquele vestido e senti que ele até tinha me caído bem. E também não podia negar um pedido de Carina, já que eu tinha perdido os quinze anos dela. Naquela noite, eu soprei velas, fiz pedidos, como qualquer sonhadora faria. Vivi momentos de intensa felicidade no meu baile de debutantes; senti-me amada e nada como o amor pra acalentar um coração que arde em desespero. Só me faltava um príncipe, mas em nossa época eles já não existiam mais.  


Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo IX






Após meus quinze anos e de viver momentos tristes e felizes, era preciso continuar a vida. Eu tinha tanta coisa pra fazer, eu tinha sonhos pra realizar, vingança pra praticar. Mas o que eu mais queria mesmo era conhecer o namorado de Carina, já que ela falava tanto dele. Por sorte, nenhum boato que me difamasse correu nos dias que se seguiram. Talvez tivesse alguma honra naquele jovem de beleza bem duvidosa, mas talvez fosse só uma questão de tempo. 

No intervalo de aula de um dia comum, eu procurei Carina, mas não a encontrei em todo o colégio, então julguei que ela tinha matado aula pra encontrar o namorado. Eu precisava conhecê-lo, então, resolvi matar aula também e me direcionar até a praça, que era o point onde todas as alunas se encontravam com os namorados. Não digo que era simples fugir do colégio, mas também não era difícil; havia uma falha no portão dos fundos cuja uma pessoa relativamente magra passava tranquilamente e todos os alunos conhecia, inclusive o vigia, mas ele era um tarado que acobertava as indisciplinas dos alunos, principalmente das meninas.  

Provavelmente alguém daria por minha falta na sala, mas eu estava pouco me lixando. Tem dias que a gente não tá nem ai, que estamos tão seguros de nós mesmos que parece que os obstáculos não existem e que todos os erros são passíveis de serem cometidos. Mas também tem dias que a gente cai em calabouços com as feras do dia a dia e parece que tudo que a gente faz são bobagens e nada se justifica. Mas aquela tarde em especifico eu me sentia capaz de seduzir o mundo, então coloquei a mochila nas costas e resolvi ir de encontro à liberdade. Sentia-me tão segura que abracei uma desconhecida no corredor da escola e continuei andando sem esperar pra ver a reação dela. Quem dera a vida fosse repleta de dias assim. Usei a saída secreta e fui até a praça. Quando cheguei, comprei um sorvete de um vendedor engraçado que fazia piada dos defeitos alheios e sai procurando Carina, que certamente estaria em algum banco da praça trocando beijos e carícias. Olhei por toda parte e nada dela, então resolvi sentar e esperar, certamente uma hora ela apareceria. Quando me deparei naquela praça sozinha, compreendi que era preferível que eu tivesse ficado na escola, pois matar aula sem um esquema, ou uma amiga pra fumar ou cometer qualquer erro de adolescente, não tinha graça nenhuma. 

O sorvete se foi e eu fiquei feito uma boba olhando para o horizonte embaraçada com as pessoas que passavam, pois aparentemente eu não tinha objetivos ali e não sabia nem mesmo onde colocar as mãos, então dispus minha mochila ridícula no colo e fiquei mexendo no chaveiro dos ursinhos carinhosos que eu tinha mesmo sem querer.
Sem nada pra fazer, resolvi observar as pessoas que iam à padaria e imaginar as profissões delas. Notei que aquela cidade era em sua maioria de funcionários públicos e comerciantes sem grandes aspirações na vida. Ali sentada, como eu não tinha um relógio o tempo não passava, o sol não baixava, cada vez menos pessoas passavam por ali e de feliz e segura de mim, eu passei a uma idiota na praça totalmente sem rumo, mas como não podia voltar pra escola, lá fiquei.

- “Sai que é tua Taffarel!” De repente senti uma bola bater no meu peito com uma força razoável ao ponto de me faltar o fôlego. 
- Desculpa, achei que você tinha reflexo como os de Taffarel. Foi burrice minha. 
Um garoto, aparentemente da minha idade, trajando um uniforme de time de futebol tomou a bola que eu segurava com uma raiva de matar, deitou-se no banco da praça e, sem razão nenhuma, deixou sua cabeça cair no meu colo. Eu não tava entendendo nada. Ele era um idiota, com certeza, pensar que eu ia agarrar aquela bola jogada com aquela força, mas ele era bonito e engraçado, não podia negar este fato. 
- Um dia vou ser tão famoso quanto Taffarel. Treino todo dia e ainda vou conseguir um teste em um time grande da capital. - Dizia ele pouco se importando com minha presença. Eu odiava futebol, aquela conversa não tinha sentindo nenhum pra mim, sequer sabia quem cargas d’água era Taffarel, mas ele era encantador. 
- Você fica bem bonita desse ângulo, sabia? 
Eu quis rir, mas me contive a fim de não demonstrar insegurança. De repente ele nota alguma coisa e levanta-se, faz três flexões e pula com destreza o banco da praça, mesmo sendo óbvio que dá a volta seria muito mais fácil. Eis que, quando eu noto, ele tá subindo no pé de Juá com um pequeno pássaro na mão indo devolver a criatura ao seu ninho. Eu tava ali há algum tempo e não tinha notado o passarinho no chão e, ele, totalmente inquieto, aparentemente incapaz de prestar atenção em qualquer coisa, notou a dor do pássaro e salvou sua vida. Aquilo pode não ter sido muito, mas não saiu mais da minha cabeça. Aquele garoto tinha realmente seus encantos. 
Após o ato de heroísmo, ele tomou novamente sua bola e, assim, do nada, deu uma pequena mordida no meu ombro, fez mais três flexões e se foi. Depois que ele desapareceu no horizonte, eu consegui falar: “Seu idiota!”, mas ele já tinha ido embora. Eu fiquei por uns bons minutos repetindo mentalmente o que ele havia me dito: “Você fica bonita desse ângulo, sabia?” Eu nunca tinha ouvido algo daquele tipo. Eu nunca, jamais, tinha me sentindo atraente ou qualquer coisa que o valha. Enfim, aquele menino tinha deixado sua marca em mim. Sem contar que juízo ele não tinha muito não, logo, tínhamos muito em comum.  

Depois de horas esperando, eu ouço a voz de Carina no outro lado da praça, quando olhei, feliz porque iria conhecer o seu namorado, a vi saindo de um carro cinza com uma amiga, em seguida dois rapazes desceram, todos contentes até demais e se abraçando. Assim como naquele dia na delegacia eu reconheci inconscientemente o filho bandido do delegado, eu reconheci aqueles dois rapazes, embora não tivesse certeza, mas se pareciam muito com os amigos de Tati que tinha nos levado pra dá uma volta.
Com aquela visão, tudo se explicava; Carina estava apaixonada por um dos rapazes na época e continua com ele mesmo depois de tanto tempo, logo, ele com certeza havia pedido pra ela não contar nada pra ninguém. Carina, mesmo sem perceber era uma peça de xadrez naquela história e eles estavam manipulando-a pra que ela não denunciasse o amigo deles, logo, todos aqueles rapazes eram cúmplices, não pelo crime, mas por acobertar aquela barbárie. Carina me parecia tão feliz e apaixonada que eu sei que qualquer coisa que aquele rapaz pedisse ela faria de bom grado. Eis que me veio à dúvida sobre aquela história que ela tinha me contado de ameaças. Mas logo depois, me sentindo mal por pensar uma coisa horrível da minha irmã, eu me recompus e me convenci que ela era só um bispo manipulado pra proteger o rei, talvez até inconscientemente. Sem contar que tinha o carro que tentou nos atropelar. Naquela hora eu tentava controlar meus pensamentos, por conta que milhões de coisas passavam pela minha mente loroteira. Sentia que tava vivendo trapaças, jogos de mentiras, assim como acontecia na novela das oito. E se tudo tivesse sido armado pra eu acreditar que Carina estava sendo ameaçada e não tivesse coragem de mexer naquela história, já enterrada pela justiça? Implorei pra que Deus tirasse de mim aquelas ideias absurdas, então me concentrei, foquei no objetivo, senão tinha corrido e deixado mais um pobre jovem sem poder usar brincos. Se bem que eu me sentia tão bem aquele dia que provavelmente não teria feito isso.  

Esperei que os rapazes se fossem e corri em direção a Carina, que quando me viu tomou aquele susto que teve que sentar no banco pra se recompor, provavelmente porque ela jamais imaginara que eu tinha coragem de matar aula ou que a seguisse. Eu não esperei que ela me dessa aquela bronca de irmã mais velha quando descobre que está sendo seguida e mandei logo na lata: 

- Pode começar logo tentar me explicar o que está acontecendo, pois eu estou muito confusa, e isso não tá fazendo bem pra minha cabeça.

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Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo X 10

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- Não há nada pra ser explicado. Agora você sim, tem que me explicar o que está fazendo aqui, matando aula. 

- Na verdade estamos no mesmo barco. O que eu quero que me explique é porque que esses caras com quem você chegou se parecem muito com os mesmos que nos levaram pra dá uma volta de carro naquela noite. Se forem eles, nós temos muito que conversar. 

- Você tá certa, são eles mesmo. 

- Então, como você continua se encontrando com eles depois de tanto tempo e simplesmente não fez nada pra que a morte de Tati não ficasse impune? Isso é o que eu não compreendo. 

- É muito simples! Eles também não querem se envolver e criar desavenças com o filho do delegado, pois segundo me contaram o delegado não costuma brincar em serviço; ele simplesmente acaba com qualquer um que se meta no seu caminho. Se a gente for investigar, ou mesmo tramar qualquer coisa pra pôr o desgraçado na cadeia, nós é que somos mortas. 

- Mas eles continuam amigos do filho do delegado? Refiro-me a eles, porque não consigo cogitar a possibilidade de você continuar vendo aquele monstro sem lhe arrancar um braço, uma perna ou outro membro mais útil. 

- Claro que não. Depois do acontecido, simplesmente nós nos afastamos, embora sejamos constantemente ameaçados, mas fora isso nós não tivemos mais contato. 

- Bem que o desgraçado podia mandar bilhetes, assim, teríamos mais uma prova contra ele, não é mesmo? 

- É, mas ele é esperto, só me contata pessoalmente quando me encontra, ou por bilhetes confeccionados com recortes de letras de revista. É um tanto infantil, mas funciona. 

Bem, minha irmãzinha, eu não tenho mais dúvidas. Vamos pra casa que hoje estou me sentindo leve como uma pluma. 

Vejo que tá mais feliz mesmo. Pode me contar o que você realmente veio fazer na praça em horário de aula? Hum! Será que arranjou alguém?! Conte-me tudo, não me esconda nada. 

- Ora, não seja maliciosa, eu não conheci ninguém. – Disse seriamente, ciente que realmente não tinha conhecido ninguém de especial. Dirigimos-nos pra casa sem pressa, pois ainda tínhamos um pouco de tempo. Apesar de eu ter dito que não me restava dúvidas, eu ainda fiquei com uma pulga atrás da orelha. Não era possível que eles aceitassem aquilo de braços cruzados, a não ser que não se importassem com Tati, ou realmente temiam a morte. E quem não teme? 

Quando cheguei a casa, eu não pensava mais no filho do delegado, não pensava em nada, só naquele singelo elogio daquele garoto na praça. Será que eu realmente possuía algum encanto? Depois de mais de dois anos, eu resolvi me olhar no espelho, até então eu não tinha motivos. Quando me deparei com minha imagem de frente o espelho, vi uma garota de quinze anos com aparência um pouco surrada; meus grandes olhos grandes pareciam assustados, meus lábios sem brilho, minhas bochechas pareciam sem vida, as sobrancelhas por fazer, mas aquele furinho no queixo ainda se encontrava lá, deixando meu rosto todo proporcional. Do nada, me olhando, eu resolvi sorrir, fazia mais de dois anos que eu não via o meu próprio sorriso e que sorriso lindo eu tinha! Mexi no cabelo, sorri novamente, virei o rosto e me olhei de soslaio e notei que, sim, eu tinha meus encantos. Depois de meia hora em frente o espelho, experimentado batons, sombras, brilhos, blush, feliz como nunca, eu deitei, abracei o travesseiro e sorri ainda que não encontrasse motivos aparentes. Por sorte, minha mãe apesar de eu não usar maquiagem alguma, tinha fé que um dia eu mudaria de ideia e sempre me comprava um coisa ou outra. 

No dia seguinte, acordei cheia de vida, tomei banho meia hora antes do horário costumeiro, sentei em frente à penteadeira, me maquiei, penteei os cabelos, coloquei uma tiara rosa, uma blusa que delineava meu corpo e guardei a do uniforme na mochila; olhei meu bumbum, era um bumbum razoável, e segura como nunca, sai do quarto outra pessoa. Minha mãe ao ver minha nova figura, simplesmente me abraçou e chorou; certamente ela pensou que me tinha de volta. Carina, esta estranhou e me beliscou, fazendo um escândalo, gritando: 

- Quem é ele? Pode me contar! Val tá namorando! Val tá namorando! Deu-me vontade de voltar pro quarto e tirar tudo, mas me contive. 

 Repetindo a caminhada de sempre até a escola, as pessoas quase não me reconheciam e me olhavam diferente, senão, era eu que me sentia diferente, então o mundo era diferente também. Já na escola, no intervalo, direcionando-me para o refeitório carregando a merenda, eu ouço novamente: “Sai que é tua Taffarel!” Minha memória logo entrou em ação, então ciente de que outra bola viria em minha direção, joguei a merenda para o alto no intuito de daquela vez agarrar a bola e evitar um desmaio. Mas era só a voz, a bola não veio! No entanto, toda aquela comida quente já estava em direção o sol e iria se espalhar na cabeça de alguém uma vez que o corredor estava lotado. Por ironia do destino, a agraciada com aquele prato na cabeça fora a mesma magricela de outrora. Ela, ainda com ressentimentos passados, adicionados os novos, com toda razão, voou pra cima de mim com uma ira justa e nos bolamos pelo pátio sem controle.

 Fazia tempo que eu não brigava e aquilo me fez um bem danado. Depois de um tempo, com os mesmos aplausos e gritos de incentivos, eu fui arrancada do fuzuê por aquele mesmo garoto da praça. Depois que me recompus, ele pediu desculpas, pois sabia que tudo tinha sido culpa dele e foi acudir a pobre garota magricela, foi então que eu levei a verdadeira pancada: ele a beijou na boca - e pronto, aquele silêncio quando se constata um fato novo e indesejável tomou conta de mim. Fui pra diretoria, mas sequer ouvi o que me diziam, sei que o garoto assumiu a culpa e acabou que levei uma advertência, mas foi só...

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Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capitulo XI




Durante aquela tarde, com o meu mundo colorido aos pedaços, me restava à escuridão. Se era um monstro que eles queriam, era um monstro que eles teriam. O amor, maquiagem, tiaras, aparência, eram coisas banais demais que não cabiam no meu mundo extenso. Eu era maior que aquilo, o meu universo era maior que aquilo. 

Antes que terminasse a aula, fugi do colégio, voltei pra casa, no caminho, roubei uma lata de espray de pichação numa loja chinfrim, fui pega, mas antes que me apanhassem de verdade, consegui escapar. Passei na farmácia, vi aquela loira linda no balcão com aquele barrigão que já devia está de uns cinco meses - e aquele sorriso constante que eu não entendia de onde ela tirava tanta alegria pra sorrir o tempo todo daquele jeito. Li compassadamente o nome no seu jaleco: "Amanda Afrânio", mesmo sobrenome que compunha o letreiro grande na entrada da farmácia. Chegando ao meu doce lar, não me importei com os questionamentos de minha mãe sobre o porquê que eu tinha fugido da escola; aparentemente alguém já tinha ligado avisando do meu sumiço, fui direto pro quarto e me tranquei com uma raiva daquelas que te põe as mais absurdas certezas no coração. Tinha a mais plena convicção que nunca mais me engraçaria por idiota nenhum, nem jamais me envergaria ao sentimento humano que fosse a não ser o ódio. Daquele momento em diante, só meus planos, só eu e mais ninguém importaria. 

Tirei todas aquelas cores da personagem que eu havia sido aquele dia e voltei a mim. Munida de uma caixa de papelão e uma tesoura eu comecei cortar aquela caixa como se estivesse ferindo a pele de um inimigo; talvez o momento exigisse que eu a destroçasse enquanto gritava os impropérios mais absurdos pra ordem que rege a vida, mas não, eu cortei com destreza e fiz quatro letras grandes de papelão e as observei ciente de que estava fazendo a coisa certa. O momento exigia que eu pintasse aquelas letras de preto, cor da minha alma, mas optei por pintar de quatros cores diferentes e alegres e as enfeitei com corações e estrelas brilhantes. Minha mãe batia na porta do quarto, mas eu não ouvia, não tinha tempo pra conversas banais. Procurei uma fita que tínhamos gravado uns dias antes de Tati morrer cuja continha a voz dela nítida e pouco suave falando besteiras: "Como eu amo ele! Carlos é o amor da minha vida." Eu nunca tinha buscado ouvir aquela fita, talvez porque não tivesse preparada para aquela nova descoberta. Se Carlos era o paquera de Tati, muita coisa se explicava. Eu poderia ali, ter me abalado, mas eu era uma rocha, nada me tiraria dos meus objetivos, aquela nova informação só me deixara com mais raiva e com mais coragem. Eu podia ter ido perguntar a Carina porque ela escondeu aquela informação de mim, mas eu tava cansada de tentar entendê-la. Eu editei a fita, coloquei uma música de ninar como plano de fundo; deu-me um trabalho monstruoso, mas utilizando dois gravadores eu consegui finalmente, afinal motivação eu tinha.  

A noite se ia sem que eu percebesse, porém, o tempo era uma grandeza que pra mim naquele momento era indiferente, como todo o restante do mundo. Ainda tinha muito por fazer. A mochila de Tati ainda se encontrava no meu quarto, lá, no mesmo canto embaixo de umas coisas que eu não usava mais. Eu tinha escondido aquela mochila por alguma razão que desconhecia e o propósito me foi revelado àquela noite por qualquer entidade mágica do universo. Quando abri a mochila, vi aquelas roupinhas que Tati sempre usava já muito surradas pelo tempo, mas não tinha espaço no meu novo mundo pra comoções. Com o próprio tecido das roupas de Tati, eu confeccionei uma réplica; uma roupinha de boneca e vesti na minha boneca preferida.

Com tudo pronto, sai do quarto, avisei a todos que eu me encontrava muito bem. Jantei, porque minha mãe exigia que eu o fizesse, tomei banho, porque o mundo exigia que eu o fizesse, fiz todas as coisas normais porque o universo exigia que eu o fizesse, mas não que fosse de minha boa vontade. Então, retornei pro quarto. O restante da noite eu passei penteando os cabelos da minha boneca preferida enquanto cantarolava a cantiga de ninar que eu tinha colocado na fita em conjunto com a voz de Tati. Nenhuma lágrima caiu dos meus olhos e se caíssem, seriam de sangue. Ah, se mente vazia era a oficina do diabo, a minha era o inferno e queimava como um vulcão. Se o pecado me assolava e o amor sadio não me era possível, alguém, quiçá o mundo, com o devido merecimento, iria conhecer quem era Valquíria Deodato de Sousa. 

 Vi, por entre as frestas do telhado o dia amanhecendo; senti com honra a última brisa da madrugada e apreciei cada raio de sol que entrava no meu quarto como se fosse combustível pra minha alma sombria. Mal clareou totalmente o dia, eu tomei minha mochila, coloquei meu pequeno toca fitas dentro, junto com as letras coloridas e a boneca que era uma réplica da minha querida Tati, e sai antes que todos acordassem. Na rua, eu não olhava pra qualquer direção a não ser pra frente. E cada passo que eu dava batia os pés com tanta força e convicção no chão, que mesmo no asfalto, parecia que minhas pegadas ficavam ali, evidenciando as minhas ações naquele dia claro e sombrio. 

Meu primeiro destino era a farmácia onde trabalhava aquela loira linda. Por sorte, a drogaria Afrânio ainda se encontrava fechada. Com auxílios de barbantes, eu escrevi com as quatro letras coloridas de baixo pra cima o nome TATI no poste do outro lado da rua, cujo ficava bem em frente ao portão da farmácia. Após concluir, corri em direção ao meu próximo destino: a casa de Carlos Salgado. Chegando lá, pichei no muro do terreno baldio em frente a sua casa o seguinte: 17 FB 1993. Depois, pichei o mesmo mais umas três vezes nos muros na estrada que dava pra farmácia. O céu estava escuro parecia que ia chover no meu jardim, então decidi que de início era suficiente e retornei pelo mesmo caminho. Daquele dia em diante eu passei acreditar que tudo que acontecia, qualquer imprevisto, privações, convergiam pra um objetivo maior na minha vida, logo, eu não estava no controle de nada, então passei a deixar o destino me guiar em tudo. Tal filosofia de vida me poupava energia e frustrações desnecessárias.   

Enquanto voltava me sentia mais leve, como se tivesse tirado mais um peso das costas. Uma tempestade se formou e caiu sobre os meus ombros; chovia tanto que eu mal conseguia ver o caminho à frente, por sorte eu conhecia aquele caminho assim como um doente crônico conhece os tratamentos e sintomas de sua mazela. Carlos salgado era a minha moléstia e eu precisava me curar, a primeira dose eu tinha tomado aquela manhã, no entanto, era preciso esperar uns dois ou três dias até a próxima dose. 

Enfrentado aquela chuva, do nada, um guarda chuva surgiu sob minha cabeça. Eu não quis saber quem segurava o guarda chuva, pois não importava. Ele me acompanhou até em casa e depois desapareceu.

Talvez, nunca saberemos de quem eram as mãos bondosas que seguravam aquele objeto que amenizou minha tempestade aquela manhã. Talvez a leitora saiba e me diga, porque eu mesmo(autor) não sei.

Ao chegar a minha casa, minha mãe ainda não tinha dado por minha falta; saltei o muro, pulei a janela do meu quarto, troquei de roupa e, quente e segura eu dormi o sono dos justos.