domingo, 23 de julho de 2017

Ninguém



Lembro-me bem da primeira vez que Ninguém bateu a nossa porta. Era uma e quinze da tarde, pediu água, lhe foi oferecido, mas o copo por ele bebido fora descartado para o lixo imediatamente ele dobrou a esquina. Ninguém poderia carregar qualquer doença contagiosa que adicionada ao nosso asco, poderia ser mortal. “ Mas, Dai de beber a quem tem sede.” 
Desde então, ele sempre que passava na estrada, pedia água e depois de beber se ia para algum lugar que certamente há tempos que já devia ter chegado. 
Passadas algumas vezes em que ele sempre repetia o mesmo gesto, ele retorna novamente a nossa porta e como previsto, pediu novamente um copo com água, mas antes que “Alguém” trouxesse, Ninguém retira do bolso seis reais em notas de dois e começa contar e ajeitar as cédulas de inúmeras maneiras sem nunca se dá por satisfeito. Até que água chega, ele pega o copo com a mesma mão que se encontrava as notas, mas depois troca o copo de mão, e finalmente recoloca as notas no bolso. Enquanto bebia, Ninguém abre os olhos e nota o copo da mesma cor das outras vezes, fica em silêncio por alguns segundos, mas nem Ninguém, nem nós admitiríamos o fato que jamais beberíamos da mesma água, ainda que tal ato fosse contrário a nossa fé pregada os quatros ventos. Depois daquela pausa, ele torna a engolir o líquido, mas via-se de longe que mais parecia que ele engolia areia em vez de água. 
Dada à frequência com que ele pedia água, já havia sido separado um copo de plástico barato com o objetivo de que ele sempre bebesse nele, de modo a não contaminar o restante dos copos da casa. 
Depois de beber, Ninguém entrega o copo um tanto cabisbaixo, como se não tivesse matado completamente a sede e sem olhar nos olhos dos supostos “Alguéns”, retira novamente as cédulas do bolso, mas logo recoloca, sem contar ou reorganizá-las como antes. Eis que, diante daquela cena, Ninguém deixa sair da sua boca as palavras mais tristes que outro Ninguém poderia ouvir: Eu nasci sem sorte, sabe? Eu nasci sem sorte. 

Ninguém quis lhe passar uma lição com esse texto.

sábado, 22 de julho de 2017

O vendedor de abraços



Um homem se dispôs na esquina mais movimentada da cidade pra onde havia se mudado há pouco tempo no intuito de vender abraços. 
Vestido "fofamente" de cão de pelúcia, ele tinha como certo que ganharia a "vida" desenvolvendo tal atividade, uma vez que segundo a sua concepção, todo mundo precisava de abraços. E como ele tinha aprendido muito cedo que carinho não se oferta gratuitamente e sim precisa se conquistar a muito custo, então vendê-los era a decisão mais acertada. E também ele concluiu que abraços sinceros estavam cada vez mais raros, ou seja, a demanda era maior que a oferta e o sucesso do seu negócio era garantido.
Retirou da mochila uma placa com os dizeres:
"Vendo abraços! Pergunte-me o preço!" Ora, a propaganda é a alma do negócio.
Nas três primeiras horas em que ele dançava e fazia piruetas de modo atrair clientes para o seu negócio, os transeuntes simplesmente desviavam dele como se ele fosse um poste comum de tão cinza. Aquela indiferença o levava a crer, por vezes, que ele era invisível, apesar da roupa, da placa e tudo mais.
A certa altura, já descontente com toda a humanidade, ele se deu conta que talvez as pessoas não estivessem dispostas a pagar por algo que poderiam receber gratuitamente das pessoas que amava e que nem faziam questão tanto assim. E mesmo, os abraços nunca dados só são percebidos depois que já não são possíveis de serem apertados. 
Triste, ele sentou-se no caixote que trouxera no caso de precisar de suporte pra abraçar algum cliente bem mais alto que ele, sustentou o queixo com as próprias mãos, respirou fundo, desesperançado e convicto que, diante do fracasso, não retornaria no domingo seguinte. 
Eis que já quase indo embora, ele sentiu uma mão no seu ombro fofo. Virou-se e notou uma moça linda, de sorriso largo e olhos brilhantes trazendo consigo uns livros e duas rosas. Ela perguntou o preço do abraço, sorrindo ele respondeu: "é outro abraço! Nada mais triste do que abraçar o outro sozinho, não é?"
Ela achou o preço muito justo. Largou os livros no caixote e se abraçaram por 30 segundos. Ao se afastarem, ela sentiu que talvez precisasse de mais, e resolveu que iria gastar mais um abraço dos seus. O vendedor, como bom empresário que era não podia recusar cliente, então vendeu mais um abraço apertado a moça.
Aquele era de fato um negócio promissor, pois os índices de inadimplência eram zero, uma vez que ao comprar um abraço, o serviço já era pago no ato do recebimento do produto, sem opções de parcelamento nem prazos. E se tivesse um único cliente por dia, já era mais que suficiente pra mantê-lo por uma semana ou mais sem se sentir tão sozinho. 
Aquela moça linda, como forma de agradecimento por aquele empreendedor tão ousado ofertar um negócio tão útil à cidade, lhe entregou uma das rosas que trazia consigo.
Diante daquele ato, ele simplesmente ficou em silêncio e desconcertado, pois ela estava pagando mais do que o justo.
Ela percebendo o seu desconcerto, disse que sempre que você oferta carinho verdadeiro, as recompensas são sempre em dobro."
Com aquele gesto, ele concluiu que aquele negócio era mais promissor do que ele havia imaginado. 

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Paraíso



Mas que lugarzinho mais sem charme, hein!
Onde é que esconderam a poesia daqui?
Em que calabouços acorrentaram os sentimentos nobres?
Onde incineraram a arte, a honra, a embriaguez de saudade?
As pessoas aqui bebem sem sabedoria,
se amam sem vontade, casam-se por ironia,
se acorrentam fartos da liberdade,
vivem de respirar e morrem de vontade...
Mas que lugarzinho, hein!
Ninguém aprecia Strauss, nunca ouviram falar de Neruda.
Vagueiam uns enovelando-se nos outros sem se entenderem,
Embora todos carreguem a sabedoria dos frades, do Papa, e até de Buda.  
E os pecadores, onde os deixaram?
As vezes penso que já me encontro no paraíso,
Pois todos são santos "batendo com a bengala da moral na cabeça do vizinho
mas nunca em si mesmos."
Todos reconhecem as próprias chagas, mas  só apontam as feridas alheias.
E amor? Em que calabouço sujo e imundo o abandonaram?
Até parece que aqui, ninguém ama,
Tampouco confiam no amor do próximo.
São cobras engolindo cobras; lambendo-se e se mordendo
a fim de não perderam o espaço miserável  do qual estão destinados.
Hei de procurar o amor nas terras onde ele deve repousar a minha espera.
Aqui, só desprezo, incompreensão e dedos apontando os meus defeitos e
ignorando minhas qualidades, se é que possuo alguma.
Hei de encontrar o amor ao virar uma esquina charmosa
de uma rua estreita, cheia de casas no estilo colonial.
Não aqui, nesse lugar sem curvas em que todos são retos aos olhos de Deus.
Aqui não me sobra espaço.
Mas onde será que é o meu lugar?
Onde será que se esconde o meu mundo de gente?
Mas que lugarzinho foram me nascer, meu Deus!


quarta-feira, 19 de julho de 2017

O FIM



Não totalmente desperta, ela lembrava do passado em que todos os dias, há primeira hora, ela apreciava o sorriso murcho do companheiro - e ouvia, ainda que julgasse não merecer, um elogio previamente pensado  e clichê do tipo: “você  é a única mulher do universo que acorda linda!” Tal gesto tão singelo, representava uma filosofia de vida e mudava totalmente o seu dia, tanto dela quanto daquele que jurara passar a vida toda ao seu lado.
Toda manhã ela levantava com vontade; a vida parecia que podia ser apertada com força,  tal qual se abraça em um dia frio o urso de pelúcia ganhado no aniversário de dezessete anos.

Agora ela acorda sem vontade,  reluta em se mover, parece que nada vale a pena. Ao ouvir o som dos anjos do inferno entoando do despertador do celular, ela se dá conta o quão triste é aquele som que a obriga levantar. O despertador, antes sem utilidade, agora era programado pra despertá-la quatro vezes em intervalos de cinco minutos - e mesmo assim, depois da última, ela levantava, mas só abria os olhos na porta do banheiro,  como não querendo encarar a realidade.

Naquela manhã, ela abre os olhos fitando os pés, sem vontade alguma de erguer a cabeça, então nota as pernas por depilar, as unhas por fazer.  Ela respira fundo, apoia-se na parede, começa movimentar os dedos sentindo a textura do tapete em forma de joaninha que agora achava de um tremendo mau gosto. Eis que lhe ocorre uma vontade louca de gritar, mas descobre que já não tem voz. Sem vontade, ela entra no banheiro, liga o chuveiro, mas não toma banho, deixa apenas que à água deslize por seu corpo como se ela fosse uma rocha em que o rio passa em direção ao mar ignorando totalmente sua existência.  Até mesmo o barulho do chuveiro cujo antes lhe impulsionava a cantarolar qualquer coisa de manhã, agora lhe representava qualquer coisa melancólica e só lhe ocorria a vontade de chorar. Às vezes ela chorava mesmo.  

Depois do banho, como em outros dias antes deste, ela passa trinta segundos em frente ao closet, tentando ganhar forças, pois sabe que imediatamente ao abrir a porta, sem questionar, o cheiro dele iria adentrar suas narinas como um touro feroz seguindo em frente sem intenção de chegar. Sem opções, ela respira fundo, abre à porta, o aroma previsto lhe cobre de lembranças felizes: as flores, a noites de prazer, os planos para o futuro, a grama verde, o pomar... Tudo sem a presença dele era abstrato; era como tentar agarrar a neblina e sentir somente o frio lhe cortando a alma. Ela escolhe uma roupa aleatória, pois sabendo que não receberia elogios de quem era importante, pouco importava. Põe um batom sem gosto, os sapatos lhe apertam os pés e, a dor, ainda que suportável, não lhe parecia justa; era como se o custo da beleza já não tivesse sentindo. 

Já próxima do trabalho cujo ia a contra gosto, ela ouve aquele som de mensagem que mais parecia um anjo tocando sax numa carruagem de ouro; era uma mensagem de voz do marido que havia viajado a trabalho pedindo desculpas por estar sem sinal, logo, não teve como lhe enviar aquela mensagem de bom dia, assim como em todos os dias anteriores. Fatalista e trágica como ela era, já tinha imaginado que ele estava lhe traindo e nunca mais iria voltar. Mas diante da nova realidade, ela esquece o aperto nos sapatos, os seus cabelos, antes sem graça, agora lhe pareciam tão cheios de vida e poder que ela era capaz de derrubar centenas de inimigas de um giro só.     

domingo, 16 de julho de 2017

O amor é ridículo


Sem amor se vê a vida com mais arte.  Ao amar tu deixas de sentir as coisas com sensibilidade pelo que elas são e passa a ver beleza apenas nas coisas que consegue relacionar a pessoa amada e, enquanto se ama, tudo tem a ver com a pessoa amada. O amor apequena as coisas: o universo se torna um sorriso especifico ou "um bom dia" as onze da manhã. Uma simples conversa sem razões de como foi o dia de cada um, é motivo da felicidade de um dia inteiro, de um mês inteiro, de uma vida toda. O amor transforma o cotiano banal numa novela extraordinária, pois te arranca alegria no simples fato de ouvir que quem tu amas acordou cedo pra andar de bicicleta. Vê que triste?! Coitados dos apaixonados! Sem amor se consegue apreciar a letra de uma música sem pensar em momentos vividos, ou que sonha em vivê-los com alguém. O amor é besteira! De que outra forma se conseguiria apreciar a harmonia das notas de uma música sem pensar nos olhos de alguém, ou nas maçãs do rosto avermelhadas enquanto sorrir de uma linda moça ali?
Que lindo sorriso! Esqueçamos isto.

O amor é uma grande bobagem! Sem amor tu consegues ler um livro friamente, vendo a profundidade dos escritos, consegues analisar a técnica do autor, o seu estilo; se é parnasianista ou expressionista, e não fica imaginando como se cada cena do romance fosse sendo vivida entre tu e quem tu amas. O amor é de fato uma perca de tempo. Enquanto não se ama, pode-se olhar o pôr do sol como se aprecia um quadro de Edward Hooper, analisando a harmonia das cores, a  técnica das pinceladas, a nitidez das figuras, e não fica perdendo tempo suspirando pensando o quanto seria bom se a pessoa amada estivesse apreciando aquele lindo espetáculo contigo. Vê o quanto mesquinho seria?

Sem amor, por exemplo, tu podes passar em frente uma floricultura e observar as rosas vermelhas e analisar friamente apenas o esforço das plantas para formar aquela linda rosa, isto, com o intuito de apenas atrair um inseto que, enganado, iria polinizar outra rosa para que a vida de ambos pudesse continuar, e não ficar perdendo tempo imaginando na  alegria de alguém ao receber, de surpresa, um buquê daquelas rosas!  Notas o quanto o amor tira a beleza das coisas?!   Esse texto mesmo, escrito cheio de amor, ficou uma merda! Grande bosta é o amor! 

quarta-feira, 12 de julho de 2017

O homem que se derretia





Em tempos de guerra, talvez ele fosse um herói, salvasse moças indefesas, construísse abrigos e assaltasse trens carregados de ouro, mas diante da normalidade do seu cotidiano, ele não passava de um pobre homem que, aos sábados, a fim de fugir de qualquer coisa que ele não sabia bem o que era, se direcionava ao parque da cidade pra ver o sol. Por alguma razão, ele sentia que tinha vindo de outro mundo, pois era ele um ser demasiadamente sensível às dores alheias, no entanto, tinha como certo que toda dor do mundo lhe era justa. Não podia ver uma abelha se afogando numa poça d’água, que ele tomava para si a responsabilidade de salvá-la, ainda que esta o agradecesse deixando-lhe o ferrão preso no seu dedão. Se notasse na rua uma mãe segurando a mão de um filho maltrapilho, as lágrimas lhe vinham com a vazão de uma cachoeira. Talvez suas roupas não fossem tão melhores que a do garotinho, mas sentia que, ele sim, merecia não trajar mais que trapos, mas aquele garotinho não havia feito nada pra merecer tão pouco. Se por ventura se deparasse com uma senhora a jogar migalhas de pães aos pombos, ele constatava que precisava, por força, se metamorfosear em um pombo, pois eles sequer agradeciam o gesto - e se pudessem ainda defecariam na cabeça da doce senhora. Em suma, ele tomava para si a dura empreitada de concertar o mundo. 

Numa tarde, se dirigindo ao parque, ele notou uma garota com o andar estranhamente lindo. Ele tinha o costume de observar o jeito de andar das pessoas, principalmente das mulheres. Segundo sua teoria, podia-se se descobrir muito pelo jeito de andar de uma mulher; se era calma, sensata, estourada, inteligente, se era prática ou teoria, se era sonhos ou realidade. Podia supor a idade, se era filha de mãe solteira, se tinha uma família estruturada ou conturbada, se namorava ou não, e tudo com uma margem de erro bem baixa. Segundo ele, as pessoas seguem padrões, logo, bastava um pouco de sensibilidade pra percebê-los.

Chegando ao parque, a garota de andar estranhamente lindo sentou-se em banco próximo de qualquer coisa bela. Nosso herói acomodou-se noutro banco imediatamente em frente, tomou o livro do dia, começou ler, mas depois da terceira linha não resistiu e passou a observar a garota notando nela qualquer coisa de arte. Os raios de sol de quase cinco da tarde lhe conferia uma cor só vista por ele antes nas pinturas de Edward Hopper. Uma abelha, aproveitando a baixa temperatura, polinizava as flores do lado daquela moça sem nome e de cabelos negros. Se ele pudesse parar o tempo deixaria que as gramas crescessem em volta do banco e das flores de modo que a natureza rústica fosse envolvendo a garota deixando-a selvagemente bela. Definitivamente vemos o mundo como somos e não como ele é.

Depois de 19 minutos em que ele vivia uma pintura desenhada pelos deuses do sol, aproximou-se um jovem vistoso, beijou a garota - e de mãos dadas se foram pra qualquer lugar longe do sol.
Decepcionado, ele se deparou com uma certeza dilacerante: suas teorias sobre tudo estavam tão certas quanto a terra era quadrada.
Irritado, ele voltou-se para o seu livro e se deu conta que merecia a decepção, pois ele tinha construído um mundo só dele, justo que os outros o destruísse mesmo.
Uma abelha, que de nada tinha a ver com seus dramas, pousou numa pequena poça de água disposta bem a frente do jovem e, enquanto se refrescava, coitada, sentiu o peso da bota do nosso herói, perdendo assim a capacidade de levantar voo novamente. Sem remorso algum, ele proferiu um foda-se a plenos pulmões e como já estava escurecendo, retornou pra casa não sentindo nada, só aquele vazio costumeiro que todos amargam ao se deparar com as futilidades da vida. 

Surdez




Ah! Se eu pudesse, como Florbela Espanca, condensar o mundo em um só grito.
Se ao menos eu pudesse expressar com palavras
o grito em mim guardado por um sentinela morto de fome.
Se eu pudesse voar num pescoço de um Cisne até Pasárgada.
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!
Grite seu merdinha!
- Estou cansado de tudo isto!
Nada de interessante acontece nesta merda.
Aqui, agora mesmo,
uma formiga, coitada, desconhecendo sua própria força, tenta carregar um pedaço de pizza centenas de vezes maior que ela.
Sendo eu, comeria até encher minha pança, voltaria feliz o e o restante do formigueiro que se explodisse.
Falta nos homens a honra das formigas.
Minha mãe, conhecendo a vida bem mais que eu,
fofoca com meu irmão sobre os relacionamentos dos vizinhos e o dinheiro que eles dão as mocinhas pra conseguirem sexo fácil.
"Umas rapariguinhas daquelas! A Madalena, obrigou a filha deixar um homem rico, que lhe dava tudo - e agora namora o próprio tio. Pobre coitada!" 
Juro que essas palavras saem da boca dela enquanto escrevo isto. Eu não quero ouvir, mas sou obrigado!
Se eu pudesse proferir um grito que me tornasse surdo,
Se eu pudesse condensar o universo em um só urro.
Ah, seu eu fosse um leão na África eu deixaria as hienas comerem metade dos alces do mundo.
Se eu fosse um tigre, eu correria até a Sibéria só pra morrer de frio.
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!
Se eu pudesse morar num poço sujo e imundo e ninguém me chamasse de louco, juro que iria.
Estou cansado desta merda toda!
Vão tomar no cu, eu não tô ouvindo não! 
Perdi os ouvidos. Diga homi, diga?

terça-feira, 11 de julho de 2017

A morte






Ontem, como em tantas outras noites semelhantes, a morte me apareceu. Diferente do que se apresenta no imaginário das pessoas, ela não é uma dama charmosa com um vestido preto e uma ceifadeira brilhante. Também não ostenta um olhar dissimulado e uma voz sensual que te sussurra poesias ao pé da orelha. Tão pouco é um monstro com mãos gigantes e um olhar penetrante. Não. Ela não é nada disso. A morte é uma mulher gorda trajando unicamente um lençol de cetim. E em vez de uma ceifadeira, ela carrega uma pena de ouro e uma placa de marfim onde esculpe sem destreza as agonias dos últimos suspiros daqueles que têm que ir – e sem entender joças de literatura, julga serem estes relatos a mais fina poesia.

Ela não tem classe alguma; muito pelo contrário, é estabanada, não consegue chegar de mansinho; já chega fazendo um alvoroço, quebrando os móveis, os vasos de flores, os espelhos. E come o tempo inteiro; seu principal pecado é o da gula. Enquanto ela permanece na poltrona que você batalhou a duras penas pra comprar, se vangloriando da dor que te proporciona, se lambuza com os seus sonhos não realizados, com os seus amores não vividos, os sentimentos guardados somente para si, com suas palavras não ditas e tudo o mais que você possa se arrepender. Ela é tão descarada que ainda rir de tudo.

E se por acaso, durante este banquete dos deuses, cai uma migalha no assoalho, fato que ocorre sempre, ela, sem o mínimo de compaixão te oferece de volta, tal qual uma criança matreira que oferece um doce ao amigo sem intenção nenhuma de dar. Ela então rir e pergunta: olha esse amor que guardou a vida toda só para si? É uma delícia, mas como você pode saber se nunca lutou por ele. Quer outra oportunidade de vivê-lo, quer? – Então com a gargalhada de um palhaço sem talento, ela responde a própria pergunta. - Não meu querido, já não te resta tempo. Cá estou eu me alimentando da vida que você desperdiçou, e sabe o que eu acho de tudo isso: nada, só estou fazendo o meu trabalho.

Então ela levanta-se e deixa que você sinta o cheiro dos abraços nunca dados, dos beijos nunca beijados – e diz como o carrasco que é, que nada nos pertence mais. 
Nos raros momentos que ela não está se alimentando, ela assovia as músicas que ouvíamos na infância somente pra que desenhemos na memória as cores do passado irremediável. 

Talvez sua aparência comum, seu jeito simples sem charme e requinte seja mais uma de suas estratégias pra que se intensifiquem nossas dores ao constatarmos que, apesar do sentimento de eternidade que sempre carregamos, ela seja o que de fato temos em comum uns com os outros. Talvez se eu fosse capaz de decifrar seus enigmas, ela já não tivesse necessidade de voltar quase toda noite. Mas prefiro assim, que ela sempre volte pra eu entender que preciso demais vida. Eu conclui, depois de tantas visitas, que ela se diverte comigo. Talvez já até tenhamos construído certa intimidade uma vez que somos muito parecidos. 

- Ah! Lá está ela de novo usando a minha poltrona do tempo. 

terça-feira, 4 de julho de 2017

Nesse novo mundo líquido, as pessoas estão perdendo a capacidade de esperar


Nesse novo mundo tecnológico em que as informações nos são inseridas sem medidas o tempo todo, há uma exigência que as pessoas também sejam uma fonte infinita de conteúdo. Há uma exigência que sejamos interessantes, que sempre estejamos felizes e dispostos; que mantenhamos sempre aquele sorriso que se captura e o eterniza em uma foto. Daí nessa exigência por sermos interessantes pra concorrermos com a imagem que as pessoas passam nas redes sociais no plano real, acabamos por nos frustarmos devido sermos apenas mais um jovem latino americano sem dinheiro no banco. 

Quando conhecemos alguém, nessa obrigação burra, nos desaguamos de uma vez só pra pessoa, de modo que em dois três dias, talvez menos, começamos a nos repetir: repetir as piadas, os atos, os sonhos, os assuntos - e aí, nos tornamos chatos, desinteressantes. Sem contar que boa parte de quem somos o outro já conhece por meio das redes sociais, logo, o mistério, aquele ponto crucial pra que uma pessoa seja cativante passa a não existir e então, não conseguimos manter relações, ao menos não na mesma intensidade do início. Ao ponto de que em pouco tempo, vai se acabando o assunto, o interesse; não se tem mais ideia de como iniciar uma conversa. 

Até mesmo a saudade tornou-se obsoleta, pois as pessoas sempre estão há um clique de distância, de modo que o espaço pra saudade desapareceu. E como ainda existe aquela necessidade de estar perto o tempo todo das pessoas que pensamos que amamos, e podendo contatá-las com um toque na tela do celular, você exige demais da pessoa; que responda a pronto e a hora suas mensagens sem importância, que curta suas fotos, que corresponda a seus status e etc. E mais, nessa exigência exagerada, os passos das relações não seguem aquela calma orgânica; eles dão saltos, afinal, se preciso ser interessante o tempo todo, é preciso evoluir rapidamente. 
Ou seguimos as mudanças do mundo líquido em constante alteração, ou nos tornamos obsoletos. 

Porém, ao passo que não nos permitimos sentir saudades dos outros, sentimos saudade do nosso passado cada vez mais cedo. Nos tempos de nossos avós, o passado só se tornava de fato passado depois de vinte ou trinta anos. Nesse novo mundo liquido, segundo denominou Zygmunt Bauman, depois de seis meses, um ano, já sentimos que vivemos trinta quarenta anos. Prova disso é que quando verificamos nossas fotos e nossos status nas redes sociais de um ano atrás, ficamos horrorizados com tamanha mudança que sofremos, tanto física, quanto mental. Isso ocorre por conta que, com esse novo tempo das tecnologias, cujo temos tudo a tempo e a hora, nossa mente, mesmo que inconsciente, se adapta as essas mudanças rápidas e pensamos que o tempo passou em demasia. Só que concomitante a isso, temos o tempo biológico que corre bem mais devagar. Essa é a maior causa dos transtornos de ansiedade do mundo contemporâneo, pois queremos que o nosso tempo siga o tempo das tecnologias e desejamos, ou melhor, exigimos, que as mudanças no nosso plano real aconteçam num clique, como quando buscamos alguma informação na internet, caso contrário a vida não pode ser suportada. 

As crianças de hoje em dia não sabem esperar, não compreendem o tempo biológico, só conhecem o tempo tecnológico, e isso, gera transtornos de ansiedade seríssimos.
 É preciso um olhar mais atento pra esse problema do nosso século.

domingo, 2 de julho de 2017

A fuga



A FUGA

Cinco e trinta de uma tarde laranja, um menino beirando seus sete anos, se direcionava rumo ao horizonte repetindo pra si mesmo que, daquela vez, nunca mais voltaria. Enquanto apreciava o céu, lembrava que um dia lhe disseram que às vezes o céu ficava laranja e vermelho devido à poluição nas grandes cidades. Ele passou então a crer que a poluição talvez não fosse assim tão ruim, porque o céu ficava tão mais bonito colorido. Mas a beleza das nuvens não era suficiente pra que ele se esquecesse de suas convicções, pois sua mãe, diante de mais uma das suas objeções ao banho, lhe deu alguns puxões de orelha que não lhe doeram o suficiente, de modo que ele resolveu fugir de casa pra nunca mais voltar. Sentir raiva da mãe ele não conseguia, então a única solução era mesmo fugir pra puni-la com sua eterna ausência.

Caminhando, ele alternava o olhar entre o céu e os pés sujos; sentia-se grudento, mas calculava que as vantagens do banho não se equivalia ao sacrifício de se molhar. Chegando ao pé de murici, local onde era o "pra sempre" das suas fugas, ele subiu e se dispôs no galho que mais parecia que tinha sido criado pra sua silhueta, pois encaixava perfeitamente seu franzino corpo deitado. Aquele galho e o chilrear dos grilos ao fim de tarde eram danado pra pô-lo pra refletir: passou a pensar que ele podia encontrar a lâmpada do Aladim e o gênio lhe concedesse o seu maior desejo que era ser adulto, alto e forte. A reação da sua mãe quando o visse adulto seria incrível: "talvez ela nem me reconhecesse".
"Queria também que os unicórnios existissem, eu montaria em um e ia pra uma grande cidade cheia de poluição, talvez o céu de lá fosse um arco-íris de tão colorido, eu venceria na vida, então retornaria anos depois rico e adulto, assim poderia ajudar minha mãe a realizar alguns sonhos que, embora pequenos, pra ela era tudo; como um piso de cerâmica e uma casa rodeada de muros." Definitivamente ele não conseguia alimentar sentimentos ruins por sua mãe, mas daquela vez, ele estava convicto que realmente não voltaria.

O sol se ia e a escuridão lhe conferia um pouco de realidade, fato que fazia com que os seus sonhos fossem sendo substituídos pelo medo, mas ainda pensava em ficar pra sempre ali. Até que o último raio de sol se foi e ele se viu inteiramente sozinho. Já estava demorando demais até que sua mãe gritasse por ele como das outras vezes.

Ele já sentia fome e suas convicções se desvaneciam com a noite, então se lembrou que no dia anterior ele tinha quatro balas que certamente enganariam a fome naquele momento de adversidade; pôs a mão no bolso e sentiu apenas uma embalagem que certamente era de uma das balas de outrora. Resolveu que iria retirá-la do bolso vagarosamente, pois enquanto ele não concluísse que era só uma embalagem, ele teria no bolso um doce delicioso. Passou a pensar também que talvez se desejasse profundamente, aquela embalagem pudesse voltar no tempo e novamente tornar a ter uma bala dentro. Ele fechou os olhos com força retirou a embalagem do bolso, mas ao abrir lhe foi inevitável à decepção ao se deparar com a embalagem vazia. Porém ainda cheio de esperança, pensou que talvez aquele plástico resguardasse um pouco do doce do passado, mas ao colocar na boca, constatou decepcionado que só tinha mesmo gosto de plástico.

Triste, ele concluiu que definitivamente a vida não era um conto de fadas. Nisto, ele ouviu a voz da mãe lhe chamando pra jantar, fato que o fez experimentar o que poderia se chamar de a mágica felicidade de ter pra onde voltar.