domingo, 12 de fevereiro de 2017

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capitulo XIII






Há alguns passos de casa, enquanto eu caminhava cantando e feliz, apareceu  de detrás de um poste de luz aquele garoto que eu tinha cometido aquele erro terrível no banheiro da escola. Ao ver aquela cara lambida, involuntariamente, imaginei ele evaporando, mas pra sempre, não no sentindo metafórico. Ele se aproximou com um olhar querendo ser sensual que o tornava cada vez mais irritante. Eu tentei fingir que não o via, mas ele se aproximou e segurou no meu braço e lambeu os lábios num gesto que me deu nojo.

- O que você quer garoto?

- Eu quero você de novo.

Disse ele segurando o pênis como se aquele membro idiota me fizesse sucumbir aos seus desejos. Mas sabia ele que se eu tivesse uma espada samurai a minha disposição eu tinha decepado a mão dele e o pênis. Os homens são mesmos ridículos, acham que porque ostentam um músculo cambaleante que as mulheres não têm, sentem-se superiores ou que têm algum poder sobre elas. Se ele estava pensando que aquele ato impulsivo ia se repetir, ele estava completamente enganado. Mas de súbito me ocorreu uma ideia plausível; se existia uma pessoa que eu poderia usar sem escrúpulos algum era aquele idiota e nada seria mais justo; era a minha chance de fazer justiça. Então, mudei logo a cara e disse dissimuladamente:

- Hoje não. Mas se você me ajudar numa coisa, quem sabe em outro dia. Eu confesso que gostei de você, gatinho. Ao ouvir essas palavras, os olhos negros do garoto brilharam fazendo-o sorrir de forma descarada, e disse:

- Qualquer coisa que você me pedir eu faço, sem pensar duas vezes.

Nem precisava ele dizer, eu sabia que se eu pedisse uma rocha de marte, ele me traria. Mas uma coisa era certa, ele nunca mais veria a cor do meu corpo, ia viver de ilusões pra sempre. Se bem que eu achei que ele não ia reclamar. Eu era um demônio, certamente, mas era o que o meu mundo exigia, de modo que eu pensava aquilo maquinalmente sem nenhum resquício de remorso. E os olhos daquele garoto feio e idiota pediam pra que eu o transformasse em minha marionete. Sem contar que mantê-lo por perto e nas minhas rédeas, impediria que ele contasse o nosso segredo pra alguém. Então eu pedi o que talvez fosse mesmo pra ele uma pedra de marte, ou não, de repente, era de sua realidade.

- Eu quero que me consiga uma droga; um negócio que os malucos tomam pra ficar doidão e fora do mundo, acho que chamam de LSD. Tem como você conseguir?

- Claro que tem. Pra quando você precisa? Disse ele com a boca, embora o resto do corpo evidenciasse que não tinha, mas eu sei que ele daria um jeito. Pensar aquilo me provocou um alívio. Conseguir a bagulho era um problema dele e não meu. Ele iria me poupar muita energia. Não há nada mais reconfortante do que ter pessoas aos nossos pés, e alguns homens nasceram pra marionetes. Então eu respondi:

- Amanhã mesmo. Você me entrega na escola, pode ser?

- É claro. Respondeu eufórico tentando um abraço que eu prontamente repeli dizendo que caricias só depois que ele conseguisse o que eu queria. - E continuou. - Então você usa drogas, pensei em muitas coisas ao seu respeito, mas não que usasse drogas.

- Não seja idiota! Eu não quero pra usar, tenho outros planos, mas deixe que eu me preocupe com isso, trate apenas de conseguir a parada.

No mais, ele se foi satisfeito com a ilusão e eu fui pra casa ciente de que ele teria muita utilidade. Eu tomava as rédeas da situação e a sensação de estar no controle era reconfortante. Pulei o muro, subi a janela, o quarto continuava trancado, talvez eu não fosse descoberta aquele dia também, isso me daria tempo e calmaria pra continuar com o plano. Mas de repente, eu ouvi a voz de Carina:

- Pode me dizer o que você tá tramando com essas fugas?

- Não é nada, só saí pra correr. A mãe sabe que eu ando saindo?

- Não, mas se você não me contar, eu conto tudo pra ela.

Eu pensei em contar tudo, mas logo pensei que era loucura e era melhor deixar aquilo só comigo, ninguém seria capaz de entender. Então contei outra versão que era bem real.

- Tá bom! Vou te contar: Eu ando me encontrando com o namorado da Gabi. Não pense bobagens, a gente só corre e conversa, não estamos ficando.

- Ah, ta bom! Quer dizer que não rolou nem um beijo? Você tá se demonstrando bem danadinha irmãzinha.

- Nada, é só amizade. E você nem ouse contar pra ninguém, se minha mãe descobre que ando saindo, e mais com um garoto, e mais,  compromissado, ela arranca meu pescoço. Trate de manter essa matraca fechada.

- Não direi nada. Estou muito feliz por você, vejo que está seguindo sua vida, tentando ser como todo mundo. Sorrimos juntas e nos abraçamos. Era uma mentira que eu podia sustentar. Como foi bom poder inventar uma mentira boba que não sugeria que era por conta do meu problema, como minha mãe sempre dizia. Nunca pensei que algo tão simples me proporcionasse uma sensação tão normal.

- Mas me explica como você entrou no meu quarto?

- É muito simples. Todos da casa têm uma cópia da chave do teu quarto. Não era pra eu te contar, mas eu acho que você deve saber. Por muito tempo pensamos que você poderia tentar tirar a própria vida, então fizemos cópias pra gente entrar sem fazer alarde.

Essa era nova. Como eu não tinha percebido antes? Então eu sempre fui muito mais louca para o mundo de fora do que pra mim mesma. Eu não conseguia entender como que poderiam pensar que eu iria querer tirar a própria vida. Nunca tinha passado pela minha cabeça o suicídio, porque simplesmente eu não sabia que existia tal coisa, já tinha ouvido falar, óbvio, mas era uma coisa que tipo só acontecia com os outros. De fato não sei quais atos de minha parte figuravam que eu poderia cometer uma ação tão extrema. Era-me muito estranho. Logo me veio na cabeça que se eles tinham acesso ao meu quarto, poderiam ter visto a boneca, ouvido a fita e tudo o mais. E se viram, concluíram logo que eu ainda me encontrava longe de superar a noite de 93; se eu construía bonecas como a Tati, confeccionava seu nome de papelão, gravava sua voz com cantiga de ninar, de fato eu era realmente completamente louca. Se eu visse algo daquele tipo também concluíria que quem o fez era doido varrido. Somente eu sabia quais os objetivos daqueles objetos. Espero que o leitor esteja captando as pistas, pois eu nunca vou deixar claro, então entenda sinais.

Com aquela nova informação, eu perdi novamente o controle, já não era maquiavélica, nem madura como pensava, era uma criança mimada que não podia ter sequer um pouco de privacidade. 








    



Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XIV




Eu quis gritar, quis correr, quebrar coisas, ver objetos esfarelados pra que eles se juntassem as condições do meu coração aos pedaços, mas me continha. Embora ao redor de mim um anel estranho se formasse e me forçava a ser quem eu já não era. Então me concentrei no futuro e no rosto feroz de um touro na embalagem do desodorante da Avon cujo me olhava com ira de cima da penteadeira. Eu precisava ser como aquele touro. Poderiam olhá-lo com angústia, com tristeza, desfaçatez, com qualquer sentimento, que o seu olhar penetrante e dilacerante se mantinha; aquele bisão da Avon tinha emoções próprias e eu tinha muito que aprender com ele. Assim, conclui que eu precisava deixar de ser um espelho que refletia as emoções alheias e agir com serenidade e maturidade e relevar aquele novo fato. Se julgassem aquele gesto mais uma de minhas insanidades, que assim fosse, eu não iria me importar. Então disse pra Carina com a segurança de uma mulher feita:

- Acho que foi uma boa medida. Eu mesmo não sei do que sou capaz, justo mesmo que tomassem precauções e me mantivessem sobre constante vigília. Agora você Carina, - disse com um sorriso descarado, - se minha mãe descobre tudo que você esconde, principalmente a respeito daquele seu namorado, você está frita. Não estou ameaçando, claro que não, mas você precisa cortar todo tipo de relação com aqueles amigos do Cabo Carlos. Tenho que confessar que não confio neles. 

- Eu não vou fazer isso! Eu amo o meu namorado! Sem contar que você tá completamente errada sobre eles. Eles não tiveram nada a ver com o que aconteceu com a gente aquela noite.  

- Não sei não. Pode ser só paranoia minha; mas e se Cabo Carlos tiver mantendo você por perto por meio deles, apenas pra que você não faça nada contra ele? Acho que deve cogitar a possibilidade! 

- Claro que não. Acho que ele já se deu conta há muito tempo que bastam as ameaças e as histórias que rola na cidade a respeito dos métodos poucos ortodoxos que o pai dele usa pra resolver os problemas pra nos manter quietas. Espero que você tenha tanto medo dele quanto eu. Você não tem? 

- Eu não tenho medo de nada. Só tem medo quem tem algo a perder - e se eu morrer não vai ser uma grande perda pra humanidade. Eu não sou nada, nunca serei nada, a parte isto, só tenho em mim todo ódio do mundo! 

- Tá vendo porque pensamos que você poderia tirar a própria vida. - Disse ela me abraçando. Você diz muita besteira, mas eu amo você. 
Aquele abraço me dizia que o que eu pensava não poderia ser levado em consideração, já que eu não batia bem da bola. 

- Agora sai do meu quarto que eu quero ficar sozinha. Sorrindo eu coloquei Carina pra fora, precisava de solidão, senão, o mundo teria de mim novamente o que ele sempre quis. 

O dia passou e, mesmo que eu tentasse pensar em algo interessante, que fosse racional, que me fizesse algum sentindo, eu só conseguia pensar na minha corrida na manhã seguinte com o garoto sem nome e sem regras. Não me julgue leitora, você bem sabe que o coração tem razões que a própria razão desconhece. 
A noite foi uma tortura. O deus Chronos passou a noite brincando comigo e não me deixou dormir. Quase de manhã, como última de suas façanhas, ele resolve me fazer adormecer.
Ainda que atrasada, me levantei, me enfeitei, coloquei minha melhor roupa; cheia de ilusões que só vendo. Eu não passava de uma adolescente normal, daquelas que se enchem de adereços pra ir até a venda da esquina. Quando consegui sair de casa, isso duas horas depois, minha mãe já mexia nas panelas na cozinha, logo, pensei que seria flagrada; pulei a janela, depois o muro - e corri em direção a minha liberdade, mas aparentemente ninguém me viu.
Ao me aproximar do local combinado, lá estava ele, ridiculamente de cabelo penteado, roupas leves e um buquê bem mixuruca, me esperando com aquele jeito inquieto como sempre. Eu confesso que o achei bem ridículo, meu coração era que tentava me convencer do contrário. Eu adorava o cabelo dele cortado no estilo surfista, super na moda, o seu jeito despojado de quem não estava nem aí. Mas aquele dia parecia que ele tinha planejado tudo. Confesso que me senti honrada, pelo menos não era só eu que me encontrava vivendo de ilusões. Quando ele me viu, jogou rapidamente o buquê para o lado pra que eu não visse, mas sem sucesso. Quando me aproximei o suficiente, para fingir naturalidade, ele faz três flexões e diz: 

- Se prepara que vamos correr até liberarmos toda energia ruim que existe dentro de nós. Vi isso em um filme de porrada; não tenho a menor ideia do que seja energia ruim, talvez seja a sensação que eu sentia quando olhava pro auto retrato da Frida Kahlo que meu pai tem na parede na nossa sala. Ele diz que é original, mas eu bem sei que não é. Meu pai adora aquele quadro, passa horas olhando. Ele disse que quando eu me casar vai ser o meu presente de casamento. Quando eu era criança tinha medo daqueles olhos monocelhas me olhando; mas meu pai me falava tanto dela que confesso que com o tempo fui me acostumando, até que me apaixonei por ela. Hoje, sempre que passo em frente o quadro, eu a saúdo, pois foi ela a minha primeira paixão. Você gosta da Frida kahlo? 

- Sequer a conheço. É bonita?

- Depende do ponto de vista. Eu tive por ela uma daquelas paixões de morder, assim como por Elis Regina dos vídeos do meu pai. “Madalena, o meu peito percebeu, que o amor é uma gota”. Cantou ele me beliscando, nitidamente deixando totalmente de lado o buquê e as palavras que ele tinha planejado dizer e sendo o garoto de quem eu gostava. Mas logo repeli a investida dele alegando que ele namorava aquela magricela. 

- Aliás, porque você namora aquela menina insuportável?

- Primeiro, vamos nos apresentar: chamo-me Jorge, mas me chame de Jorge Luiz, não tem Luiz no meu nome, mas eu acho que assim soa melhor na voz do Galvão Bueno. E o seu nome eu sei. E respondendo sua pergunta: Eu fico com aquela magricela por uma razão bem simples: todos os meus amigos a querem - e também gosto dela. Não é uma paixão de morder, mas confesso que ela é bem, bem, sei lá, linda. Não tanto quanto você, mas é bonita. Mas vamos correr que nós ganhamos mais, afinal, foi o que viemos fazer. Não foi? 

Confesso que julguei a resposta dele bem reconfortante. Eu poderia dá uma de moralista e dizer que não, mas meu coração não permitia. Conclui que se ele não gostava dela tanto, podia muito bem terminar. Eu não perguntei se ele conhecia minha história, tive medo de saber que ele sabia que eu tinha fama de louca e todo o resto, então nossa relação deixasse de ser normal como fingíamos que era. Coisas de quem ama.

Depois de correr por vários quilômetros sem direção aparente, retornamos para o mesmo ponto de onde saímos. Deitamos-nos na grama, eu sorri, ele sorriu. Até que ele resolve, numa brincadeira, pular em cima de mim e tentar um beijo. Meu corpo encolheu, eu me senti me perdendo dentro de mim e voltando no tempo. Logo que percebi o corpo de um homem suado sobre mim, as sensações daquela maldita noite voltaram como uma âncora e eu pensei que elas levariam para o fundo do mar a minha felicidade. Ele encostou os lábios na minha boca eu os mordi; eu iria arrancar um pedaço deles como da orelha do Cabo Salgado,  mas logo me dei conta que aqueles lábios não tinham a textura nem o gosto de que eu me lembrava da noite de 93, tão pouco o corpo dele me prendia, nem me forçava a nada; era tudo diferente e libertador. Ele, assustado, me larga e diz sorrindo com uma voz de dor: 

- Uma coisa é certa, nunca mais vou me esquecer desse beijo. 

Com quinze anos eu nunca tinha beijado e nunca tinha tido curiosidade, pois o mais perto de que eu me lembrava de um beijo não era bonito, nem mágico, como foi aquele dia. Depois daquele beijo sem técnica nenhuma, eu levantei, fui até onde ele tinha jogado o buquê ridículo, juntei e voltei pra casa feliz como os unicórnios da terra do nunca; se é que existem unicórnios na terra do nunca, sei que no meu coração tinha milhões deles, saltitantes e mágicos...

Leia o capítulo quinze clicando nesse link 

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XV








É importante ressaltar que eu retornei pra casa feliz, pensando naquele beijo, pensando em Jorge Luiz, embora o tivesse largado lá na grama sozinho e sem dizer uma palavra sequer, mas quem disse que a gente precisa entender. Juro que pensei abandonar os meus planos malignos e viver de amor pro resto da vida; sei que ninguém iria se importar, nem mesmo a alma de Tati cuja me sussurrava ao pé do ouvido toda noite pra eu escolher o amor acima de tudo. Mas depois pensei que não era justo comigo, nem com Tati, muito menos com Carina, eu precisa tentar só pra não conviver com a sensação horrível da covardia. 

Enquanto retornava pra casa eu pensava nas coisas que eu tinha que fazer à tarde pra continuar os meus planos, embora o beijo de Jorge me surgisse de vez e sempre me levando pra qualquer lugar colorido cheios de unicórnios. Mas era preciso separar as coisas. Como se fosse possível se tratando de paixões. A gente vive se enganando mesmo!  
Porém, seria naquela tarde que eu iria verificar o quanto aquele garoto pouco elegante estava disposto a fazer por mais alguns segundos de ilusões. Se bem que, talvez eu não quisesse mais tanto que ele conseguisse a droga que eu tinha pedido. Se ele conseguisse o entorpecente, certamente ele ficaria no direito de me cobrar alguma coisa, mas bastava adiar o evitável. É muito fácil manter os homens na palma da mão. Pensando nisso, conclui que era melhor mesmo que ele trouxesse. 

Cheguei a casa, ninguém deu por minha falta. Como eu tinha o costume de acordar sempre depois das dez da manhã, ninguém me incomodava antes das onze. Essa era uma vantagem de se ter um problema, eu não tinha obrigação de fazer tarefas domésticas, pois ao certo não desempenharia bem, então, não tinha que acordar com os galos. Deitei-me e por razões que bem conhecemos, não consegui dormir; aquele beijo ainda existia em meus lábios. Certo que talvez eu tivesse enaltecendo demais um gesto tão simples, mas é isso que os adolescentes fazem: transformam grãos de areia em castelos.   

Às dez da manhã eu fingi que acordei, fingi que tomei café, depois fingi que tomei banho e demorei duas horas me arrumando; numa tentativa de me tornar mais bonita que a magricela namorada de Jorge Luiz – e deu certo; senti-me muito bela. Sem sombra de dúvidas eu tinha os meus encantos. Depois de passar em frente o espelho dezenove vezes de propósito a fim de me pegar de surpresa, sabe, pra me ver como era que os outros me veriam ao caminhar pelo corredor da escola, mas descobri que me pegar de surpresa era quase impossível. Sei que as meninas entenderam o que eu quis dizer. Após perceber que não me daria por satisfeita e não tinha mais tempo de ficar em frente o espelho, verifiquei se a boneca que trajava a réplica do modelito de Tati se encontrava na mochila onde sempre a deixei e sai pra esperar Carina na calçada. O sol do meio dia me fez tão bem que eu quis abraça-lo; fechei os meus olhos e deixei que aquela energia maravilhosa se apoderasse de mim. De olhos fechados, estranhamente senti como se eu me encontrasse no cume de uma montanha e selvagens com tambores ritmassem um ritual belíssimo de absorção de energia em  nome  da deusa do sol que era eu. O mundo girava eu inspirava a luz e tudo em mim brilhava. Talvez essa ideia me tenha surgido devido às inúmeras vezes que assisti Lagoa azul na sessão da tarde, mas não deixava de ser uma cena bonita.  

Tão logo cheguei à escola, o rapaz de pouco charme me puxou de lado e me entregou o que seria LSD, eu não quis sequer verificar, nem mesmo tocar naquilo, mas ele foi logo me avisando:  

- Não é LSD, mas o cara que me vendeu disse que é uma substância extraída de um cogumelo poderoso que vai provocar muitas alucinações. 
Notei logo em sua face o medo que ele tinha da minha reprovação e, com razão, pois sabemos que não há honra no mundo do crime, então aquela substância poderia ser pílula de açúcar, mas era preciso confiar, já que não tinha outra opção. Então o abracei e proferi uma palavra de consolo, fato que fez com que ele respirasse e depois lhe passei o restante do plano.  

- Eu quero que vá à lanchonete ali do lado, compre uma Coca-cola e coloque esse negócio dentro, feche a garrafa - e escute bem pra não dá mancada: aguarde a viatura daquele policial que passa todos os dias aqui em frente pra ver as meninas; você deve conhecer, ele finge que vai a lanchonete tomar uma Coca, mas eu bem sei quais são as suas intenções verdadeiras. Quando ele chegar, se disponha em frente ao balcão e espere ele buzinar pro dono pra que lhe entreguem o refrigerante, então como você vai se encontrar mais próximo ele vai pedir que você leve e entregue ao desgraçado. Você só tem que trocar as garrafas e entregar a garrafa batizada. Pode ser que ele perceba que algo tá diferente com o lacre, mas cavalo dado não se olha os dentes e você já deve se encontrar longe quando isso acontecer. Assim que entregar a garrafa, volta pra escola e me conta como foi. 

Poucos minutos depois do garoto ter saído, embora morrendo de medo, ele retorna tremendo feito bambu e dizendo:

- Tá feito, mas acho que vai dar merda. Mexer com a polícia não acaba bem. Estamos ferrados. 

- Calma! Nada vai acontecer. Pode ficar tranquilo. Agora vai pra sala que o sinal já tocou. Eu não vou estudar hoje que preciso concluir os meus planos. E trate de não contar nada pra ninguém, “querido”, amanhã nos conversamos. E fica calmo que tenho tudo sobre controle. 

Quando ia me direcionando pra saída secreta no portão de trás, uma mão macia e cheirosa me segurou forte pelo braço; unhas vermelhas, pelos descoloridos, eu bem conhecia aqueles braços finos e charmosos. Por impulso do momento, simplesmente me virei e beijei a boca do corpo que sustentava aqueles braços. A razão porque eu beijei aquela garota talvez tenha sido sensata, pois aquele beijo poderia evitar um escândalo, já que silenciaria a pessoa que me segurava. Mas talvez eu realmente quisesse beijá-la, por desejo ou qualquer coisa que o valha. Sei bem que o sangue que se via de longe nos olhos da garota logo se desfez com o beijo e fez com que ela simplesmente voltasse de onde viera tocando nos lábios, certamente sem entender muito bem o que acontecera. Ninguém viu, logo, o escândalo estava sanado.

“Que lábios macios”, eu pensei, mas depois des-pensei e fui em direção à saída pra concluir os meus planos. Desde que Carina não desse por minha falta, tudo estava saindo como planejado.

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Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XVI






Ao me libertar dos muros do colégio, quando me direcionava em direção à praça a fim de ver o policial já em suas alucinações e totalmente perturbado, eu encontro Jorge Luiz indo em direção à escola pra usar a quadra esportiva no contra turno. Eu não esperava vê-lo e talvez encontrá-lo naquele momento não fosse o ideal, mas até que gostei; meu coração palpitou e eu fui às alturas. Mais uma vez pensei em desistir de tudo e ir namorar em um local discreto como qualquer garota na minha idade, porém me contive, pois eu me encontrava em um momento muito confuso. Quando eu refletia sobre a possibilidade de iniciar, tipo, um relacionamento sério com ele, não me parecia uma grande ideia, pois tinha muitos problemas envolvidos. Se ele descobrisse aquele maldito deslize incontrolável no banheiro da escola; se ele ficasse sabendo que há poucos minutos eu tinha beijado sua namorada; se ele tomasse conhecimento dos meus planos pra destruir o cabo Carlos Salgado, tudo estaria acabado. Era muito complicado, ou talvez não, eu era que complicava tudo. Mas ele me olha com aqueles olhos grandes e simplifica tudo, dizendo:

- "Eu jurei pra mim que nunca mais amaria ninguém, e que se acaso eu me envolvesse seria coisa de momento", mas você apareceu e tudo mudou. Acho que eu Te amo Valquíria! Claro que eu ainda tenho que consultar os astros a respeito, mas tenho quase certeza.

Eu ri e o beijei. Era a única coisa plausível que eu poderia fazer naquele momento. O papo dos astros foi muito engraçado. Até que ele me convidou pra passar à tarde com ele, mas eu disse que não podia, pois tinha assuntos importantes a tratar. Ele ficou intrigado, porém ele não me parecia ser do tipo de pessoa ciumenta, nem desconfiada, era do tipo que simplesmente vivia. Como eu o invejava. Ele sequer questionou porque eu estava matando aula, ou seja, era o homem perfeito. Ele foi jogar e eu fui exercer a arte de não ser normal, embora tenha combinado de nos encontrar mais tarde, no entanto eu tinha a consciência de que vê-lo com a sua namorada depois de tudo que aconteceu, não seria uma boa ideia, mas depois eu pensaria sobre isso.

Quando cheguei à praça, logo avistei a viatura, mas não encontrei Carlos Salgado; certamente estava com algum esquema com uma aluna novinha como ele gostava, e provavelmente drogado, talvez aquilo não acabasse bem e eu seria a culpada. A culpa me pesou sobre os ombros. Mas por sorte ele saiu da mercearia com uma garrafa de água e retornou pra viatura e lá ficou; embora nitidamente diferente, sem aquela segurança costumeira proporcionada pela farda. Sorrateiramente, me aproximei um pouco mais - e camuflada pelos arbustos da praça eu fiquei observando; sua testa suava; seus olhos não pareciam se fixar em qualquer coisa. Estava inquieto, irritadiço. Não conseguindo ficar na viatura, ele novamente sai do carro, vai até a mercearia, pede outra água e se escora na parede do local fingindo saber o que estava fazendo, mas visivelmente alterado. Ao vê-lo naquela situação eu conclui que seria a oportunidade perfeita. Então corri até em casa, pulei o muro, pulei a janela do meu quarto que eu mantinha sempre aberta exatamente para aquele fim, peguei meu toca fitas de porte médio e rapidamente tomei o caminho de volta à praça, torcendo que ele ainda estivesse lá naquele mesmo estado deplorável, uma vez que certamente eu iria gastar mais de meia hora no percurso ida e volta.

Porém, logo depois da farmácia, o destino me agraciou com um belo acaso: entre duas de minhas pichações, eu avisto a viatura de C. Salgado em frente a um muro de um terreno baldio, mas não notei ele no banco do motorista. De súbito me veio à sensação de que ele se encontrava atrás de mim e tocaria no meu ombro a qualquer momento. Minha espinha se eriçou e meu corpo inteiro se contraiu em um estranho calafrio. Por alguns segundos eu tinha como certo que ele me flagraria e me mataria, não antes de me torturar bastante. Mas foi só uma ilusão proporcionada pelo medo, de modo que, mesmo contra a vontade de minhas pernas, eu me aproximei até uma distância segura e observei ele fazendo xixi no terreno baldio. Com ele envolvido pelo muro, eu me encontrava longe do seu olhar de demônio do deserto, embora não estivesse totalmente segura. Deitei a boneca na saída do terreno, me escondi dando a volta na parede entre a vegetação e toquei a fita que eu tinha gravado com a voz de Tati em altura razoável. Não tinha como eu ver Carlos salgado antes que ele deixasse as dependências do muro, mas eu sei que ele ouvia a cantiga de ninar em conjunto com os sorrisos de Tati. Se Carlos Salgado sempre fora o paquera de Tati, como eu passei a acreditar desde que descobri que Carina me escondia muitas coisas, ele se lembraria da voz dela e a drogas o fariam pensar que era paranoia, alucinação da cabeça dele ou mesmo a alma dela vindo o torturar pelo que ele fez. De qualquer forma era o que eu podia fazer, se iria funcionar ou não, era outra história.

Ele saiu meio cambaleando do terreno, não notou a boneca, mas parecia ouvir a música, no entanto, procurava de onde vinha o som, mas não na direção correta, pegou uns blocos de construção, proferiu um grito e jogou na direção contrária da qual me encontrava, certamente imaginando que o som partia daquela direção. Se aquelas atitudes pouco sensatas eram responsabilidade da substância ingerida na Coca-cola eu não sabia, mas ele tava visivelmente transtornado. Depois de jogar o bloco, ele para, coloca as mãos nos ouvidos, abre e fecha a boca como se o som que ele ouvia viesse dos movimentos do seu maxilar ou de suas entranhas. Por sorte ele ainda não tinha notado a boneca, o que era algo bom, uma vez que um objeto palpável poderia lhe tirar a ideia de alucinação. Naquela hora eu já tinha me arrependido de ter deixado a boneca ali de uma forma tão evidente; se ele a levasse pra casa, seria uma prova contra mim, mas já estava feito.

Carlos Salgado então fica olhando para nada por um tempo, provavelmente inconsciente de si mesmo, passa as mãos nos olhos como o Vandame no filme O grande dragão branco e vem em minha direção. Daquela vez eu não teria como fugir, meus planos estavam arruinados e eu tava mortinha da silva. Mas eis que assim como de impulso eu beijei aquela garota, por impulso eu aumentei o volume do toca fitas, com isso ele para, olha para o alto, chuta umas caixas de papelão ali jogadas, encosta a testa no muro e esmurra com força a parede como se quisesse expurgar os demônios que o atormentava. Eu realmente não podia acreditar que alguém podia comentar um crime tão bárbaro e não sentir remorso ou qualquer coisa que o valha. Esse era o único fato pelo qual se pautava meu plano, sem ele, a chance de dá certo era mínima. Mas pelo visto, tava funcionando. Depois de um tempo, quase até senti pena do desgraçado, afinal sou humana, mas logo passou quando me lembrei do gosto de terra e sangue que mastiguei naquela noite de 93. Deu-me vontade de pular em cima dele e arrancar o restante da orelha, mas ele era bem forte, eu não teria chance.

Ele então, do nada, empunha a arma e aponta em minha direção como se olhasse diretamente pra mim com aqueles olhos vermelhos do diabo. Aparentemente ele realmente me via. Senti-me como em um sonho em que sabemos que estamos longe dos olhos do demônio, mesmo assim, o monstro nos ver, não importa o quanto escondidos estamos. Então senti o cano frio daquela arma em minha nuca e logo depois o cheiro da pólvora do disparo que atravessaria o meu crânio. E não era pra menos, com tudo que eu estava fazendo talvez fosse o meu destino mesmo morrer por uma bala do revólver do Cabo Carlos Salgado. Mas o mundo requer da gente apenas coragem pra fazer o que é certo. Eu sabia que Deus nem a justiça humana fariam nada com aquele desgraçado, uma vez que ele levava a vida como antes, ficando com meninas novas e tudo mais, mesmo depois de casado, mesmo com o peso na consciência, se é que ele tinha consciência, afinal, psicopatas não sentem remorsos, por isso são psicopatas. Embora naquele momento ele sentisse qualquer coisa, mas pouco eu poderia dizer se era remorso ou só efeito da droga que ele havia ingerido com a Coca-cola.

Depois de um tempo apontando a arma na minha direção, ele guarda, quase não consegue abotoá-la no suporte e entra no carro. De dentro da viatura, ele nota a boneca escorada no muro e desce novamente, mas sequer fecha a porta. Até que sem entender nada, novamente ele senta no banco do motorista e acelera pra qualquer direção que não me interessava mais. Foi muito arriscado o que eu fiz foi, mas era preciso, ninguém faria por mim.

Depois que ele tomou distância, eu respirei, recolhi a boneca, o meu toca fitas e fui em direção à farmácia. Como eu iria passar o restante da tarde sem fazer nada, resolvi tirar uns dedos de prosa com minha amiga querida e grávida que trabalhava lá.

Na época eu não pensava nas consequências dos meus atos para os outros, só pra mim. Eu pouco me importava com o que aconteceria comigo. Talvez no dia seguinte cabeças rolariam devido o que eu tinha feito, mas eu era jovem e inconsequente, não ligava pra muita coisa...

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XVII




Passado o tempo necessário, eu retornei pra escola. Justo que passou bem rápido, já que a conversa com Amanda se demonstrou muito agradável. Eu não havia previsto que Amanda fosse uma pessoa tão maravilhosa, de modo que minha amizade com ela foi algo muito natural, embora eu tenha forçado o primeiro encontro. 

Ao chegar ao colégio o sinal já havia tocado, todos os alunos se dirigiam para os ônibus, e os que moravam próximo da escola caminhavam para as suas casas com uma alegria só vista em adolescentes ou em adultos bêbedos. Eu logo de longe avistei Carina inquieta, ao certo a minha espera. Senti-me aliviada por não dá de cara com Jorge Luiz, tão pouco com a namorada dele, pois não sei como reagiria; provavelmente de forma dissimulada e indiferente a tudo que ocorrera naquele dia, pois não haveria outra forma de encarar aqueles calorosos acontecimentos.
Não fui até o portão e esperei que Carina desistisse de me esperar e caminhasse em direção à estrada que dava pra nossa casa. De longe, lá da esquina que dobrava a rua, eu tencionava ver o vulto de Jorge Luiz, não queria que ele me visse, mas eu precisava vê-lo, talvez com a intenção de averiguar se ele estava com a sua atual namorada, que certamente seria a ex muito em breve, mas não o vi. Com certeza ele há tempos que tinha ido embora. Fiquei profundamente decepcionada por ele não ter esperado pra me ver. Estranhamente a gente quer que as pessoas sintam mais falta da gente do que o contrário. Eu havia de certa forma dado um fora em Jorge Luiz mais cedo, mas esperava que ele ficasse feito um cachorrinho faminto a minha espera, e quando constatei que não havia sido do jeito que eu tinha pensando, me bateu uma coisa ruim, uma sensação como se tivesse perdido ele pra sempre. As paixões são de fato uma merda.  
Carina desistiu de me esperar, e decidiu ir sozinha pra casa. Na esquina, eu  a surpreendi com o toca fitas no volume máximo, fato que quase mata ela de susto ao ouvir a voz de Tati na fita. Eu era mesmo louca, não tenho dúvidas.   

- Meu Deus Tati, o que cargas d’águas você faz com esse rádio tocando a voz mórbida de Tati com essa cantiga de ninar assustadora? Enlouqueceu de vez? 

- Eu trouxe pra um trabalho e essa fita tava dentro do suporte por coincidência. Achei que ia gostar de ouvir a voz de nossa querida amiga, já que às vezes parece que você esquece o que aconteceu com ela. 

- Não é que eu esqueça, eu simplesmente escolho não pensar já que não posso fazer nada pra mudar o passado. E nem você também. Espero sinceramente que você não esteja cometendo nenhuma loucura que possa colocar nossa família em perigo. 

- Relaxa. Eu também já estou desencanando dessa história. 
Que mentira mais absurda. Era certo que enquanto eu não me sentisse vingada, enquanto eu não carregasse a certeza que aquele desgraçado pagou pelo que fez, eu não conseguiria respirar, nem minha vida podia continuar normalmente. Não era tão simples pra mim quanto pra ela, mas eu não esperava que ela entendesse. Na verdade, eu que não a entendia, pois qualquer pessoa sensata concluiria que ela estava certa e eu que estava mexendo com fogo, mas eu era egoísta demais pra entendê-la. 

Ao chegarmos ao nosso lar, nossa mãe, como sempre quando nos atrasávamos dois minutos, já nos esperava na calçada e com aquela preocupação excessiva com minha pessoa, ignorando quase a existência de Carina. Antes da noite de 93, Carina era a preferida, a raquítica com problemas alimentares, então todas as atenções de minha mãe eram pra ela, depois que contrai a loucura, ela voltou a sua preocupação excessiva somente pra mim. Confesso que eu tinha inveja de minha irmã por minha mãe só se preocupar a priori por Carina e eu quase nem existir, mas depois eu descobri que eu era privilegiada por não ter os olhos, os chás e os remédios de minha mãe no meu criado mudo o tempo todo. Tudo em demasia sobra, eu sempre amei minha mãe, mas ela precisava entender que eu precisava de espaço, se bem que, sem espaço eu já fazia tudo que fazia, imagine com plena liberdade. É provável que eu colocasse fogo na delegacia. Risos.  

Depois de tomar dois litros de chá e novecentos remédios pras mais variadas doenças e de comer o jantar até o fim, mesmo sem vontade, eu fui para o quarto e foi então que comecei refletir sobre aquele dia frenético. Eu tinha corrido, eu tinha beijado uma garota, eu tinha enfrentado, embora não diretamente, Carlos Salgado... E nessa de refletir, me bateu a realidade: se a namorada de Jorge Luiz havia me procurado pra tirar satisfação no início da tarde, isso queria dizer que ela já sabia do nosso lance. Como eu fui burra! Simples assim: ele tinha terminado com ela de manhã e havia confessado que gostava de mim. Como ele era simples. Foi por isso também que eu não vi os dois juntos na saída do colégio como todos os dias. Só que eu tinha feito merda beijando ela; agora ou ela julgou que eu fosse lésbica, então não me viu mais com uma rival, ou ela também gostou do beijo. Nossa, que loucura. Minha vida tinha que ser mesmo uma desgraça porque eu só fazia bobagem. Essa ideia se fixou na minha cabeça, mas não era somente a situação em si que me intrigava, ter gostado muito daquele beijo também estava me dando nos nervos. 
Beijar uma mulher não era como beijar um homem; ela tinha o cheiro bom, a pele macia e não se impunha a minha pessoa com ar de superioridade como os homens. Beijar uma garota me passou a sensação gostosa de cumplicidade, de igualdade. Talvez eu fosse mesmo lésbica. Tentei tirar aquele absurdo da mente - e pensar em Jorge Luiz funcionou como catalisador da reação.  

Quando me surgiu a ideia de que Jorge tinha já terminado com a sua namorada apostando todas as suas fichas em um relacionamento tempestuoso comigo, eu entrei em desespero. Ele não tinha feito uma boa escolha. Ele era simples, vivia, não tinha questionamentos existenciais, enquanto que eu era um turbilhão de emoções. Em um relacionamento entre duas pessoas diferentes como a gente, das duas uma: ou eu descarrilaria a ordem maravilhosa da vida dele transformando sua existência em um inferno, ou ele me colocava nos eixos. E me conhecendo, não teria como escaparmos da primeira opção. E mesmo, com tudo que eu já havia feito, a segunda opção já podia ser descartada. Maldita seja essa capacidade que eu tenho de pensar em tudo de antemão. Mas o importante é que se eu o tinha perdido quando não o vi na saída da escola, com aquela nova certeza baseada em minhas ilusões, eu o ganhei de novo. Ele tava em minhas mãos. Durante um dia, eu o perdia e ganhava umas duzentas vezes, só me baseando em minhas teorias absurdas. Embora eu tivesse a mais pura certeza que uma hora eu iria perdê-lo de vez e pra sempre. Era um inferno essas minhas reflexões. Se havia uma coisa que eu queria era ser daquelas pessoas que simplesmente deita e dorme; que deixa pra pensar nos problemas à medida que eles se apresentam, mas não era. 

Na manhã seguinte eu não tinha grandes objetivos pra uma corrida, a não ser, encontrar Jorge Luiz por acaso, uma vez que não tínhamos marcado nada, mas não me custava nada tentar. E dito e feito, parecia que ele havia pensando no mesmo ou simplesmente corria ali todo dia. Escolhi pensar que ele havia se direcionado para o mesmo local que iniciamos a corrida na manhã anterior pra me encontrar, assim como eu. A gente escolhe no que acreditar. Ele me abraçou, mas não me beijou, talvez por medo de levar outro fora, e disse:  

- Ontem se você tivesse me dado chance, eu teria te contado que tinha terminado tudo com aquela magricela, como você chama, mas você meio que me obrigou seguir o meu caminho. Eu quero dizer que, mesmo você não gostando de mim tanto quanto eu gosto de você, eu estou disposto a lutar por você, até as últimas consequências. 

Óbvio que ele tinha tirado aquela frase “até as ultimas consequências” de algum filme de artes marciais; ele não teria como saber o que significava aquilo, mas achei bem fofo e resolvi beijá-lo, já que se tratando de amor o tempo sempre é uma desordem e ao mesmo tempo em que sobra nunca é o suficiente, então namoramos um tempo.  Enquanto estava ali com ele, eu resolvi me entregar àqueles sentimentos e deixar pra pensar no futuro quando fosse realmente futuro, embora soubesse que quando deitasse novamente a cabeça no travesseiro, os pensamentos voltassem. Retornei pra casa feliz, ignorando totalmente todos os meus problemas. 

De repente, era meio dia e eu tinha que ir novamente pra escola. Como o tempo voa quando se ama, ou quando se pensa que ama, mas não importa, voa do mesmo jeito. Enquanto caminhava pela estrada de sempre com Carina, senti alguém me seguindo e a cada passo eu sentia que ele se aproximava mais, a ponto de sentir a respiração do perseguidor bufando no meu pescoço. Era aterrorizante. Talvez fosse apenas uma sensação devido a realidade do que eu tinha feito com Carlos Salgado ter se apresentado de fato pra mim somente quando o sol me corou a testa aquela tarde, mas se era um demônio ou qualquer coisa que o valha, me incomodava. E eu não podia demonstrar a Carina o meu medo ridículo baseado em sensações, pelo menos não antes de se confirmar, pois ela concluiria que minha loucura tinha evoluído pra um grau avançado de ver coisas. Não seria nada bom pra mim.   


Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XVIII








Pensei que a sensação de perseguição passaria à medida que eu visse mais pessoas tão logo me aproximasse do colégio, mas a sensação me era cada vez mais evidente. Sentia como se a qualquer momento alguém, alguma coisa, me puxaria pelo braço e me diria que era hora de prestar contas por toda a maldade que eu havia cometido. Mas era só sensação mesmo.

Quando chegamos à escola, o rapaz, levemente feio, que talvez não fosse tão marionete assim, me puxou pelo braço me jogando atrás de uma coluna dizendo-me que era hora de cumprir o combinado uma vez que ele tinha feito tudo que eu havia pedido. Sem pensar dei logo uma bronca nele:

- Não me puxa desse jeito, alguém pode ver e não vai ser bom pra gente. Era você que vinha me seguindo no caminho até aqui? 

- Você quer dizer, não vai ser bom pra você. Pensa que eu não sei do seu lance com o Jorge, aquele maluco fascinado por futebol. Falando nisso, eu não estou entendo qual é a sua com ele? Pode me explicar logo! E eu não tô nem ai se alguém me vir com você, vou ficar é feliz na verdade. E que papo é esse de que eu a segui até aqui, só te vi aqui na escola.
- Disse ele tentando me beijar, o que me custou muito desviar daqueles lábios grossos e assimétricos, mas consegui repeli-los a muito custo com um empurrão bem forte. 

- Esquece a perseguição. Você tá me cobrando ciúmes? É isso mesmo? Eu não acredito! A gente não tem nada garoto. Você precisa ainda me provar muita coisa pra eu cogitar a possibilidade da gente ficar junto. Acha mesmo que aquele gesto de conseguir o entorpecente e entregar ao policial seria o suficiente pra provar que você me ama. Não, não, querido. Eu preciso que você fique em silêncio, não conte nada a ninguém sobre o acontecido, quando eu me der conta que você realmente é capaz de guardar esse segredo, aí, pode ser que a gente fique. 
Eu precisava ganhar tempo com ele, não sabia se essa conversa ia realmente funcionar, mas eu precisava tentar. 

- Você pode não acreditar, mas eu te amo e vou provar isso pra você. – Disse ele com uma segurança como se tivesse no controle da situação. 

- Tá! Agora vai, antes que Carina nos veja. 
Com esse papo eu ganhei um pouco mais de tempo, mas eu não sabia quanto; um dia, talvez eu não pudesse mais manter aquele segredo. 

Quando eu pensei que tinha acabado, me aparece Jorge com mais cobranças. Mania que os homens têm de nos cobrar qualquer coisa o tempo todo, pois se não provamos que somos deles a todo o momento, eles não se sentem da gente. Maldita insegurança masculina.  Pelo menos ele não me vinha com frases clichês, era sempre divertido falar com ele.  

- Então, hoje eu tava ouvindo a rádio FM e segundo os astros eu realmente te amo. Logo, eu preciso saber se você aceita namorar comigo. Sabe, como a lua e marte, como a grama e a formiga, a flor e os rouxinóis, o anzol e o caracol. Hoje tô me sentindo muito apaixonado. Segundo meu signo, hoje pode ser um bom dia pra ser romântico. Disse ele sorrindo.  

- Eu tive que rir abertamente daquelas comparações nada a ver - e diante daqueles sorrisos que tanto me faziam bem em momentos que eu devia gritar para o mundo que tava tudo errado, eu respondi que sim, pois não tinha escolha; se existia uma pessoa que me fazia me sentir bem era Jorge. 

- Tá bom Jorge Luiz! Seremos como o Galvão e o Taffarel. Eu disse essas palavras gargalhando no intuito que ele entendesse que as suas comparações não acompanhavam o romantismo daquele momento pitoresco. Ele respondeu:

- Nossa! Essa comparação foi bem idiota, mas foi engraçada. Agora dá aqui esses lábios que somos como queijo e goiabada. 

Ah! Pelo menos acertou uma. 
Eu o beijei porque tinha que beijar. Quem dera a vida inteira fosse como enquanto se está apaixonada, tudo se resolve com uns beijos da pessoa amada. Quem nos viu durante aquele beijo foi sua ex-namorada, a garota que eu também tinha beijado e gostado. Jorge não a viu, mas eu a vi quando abri os olhos enquanto o abraçava. Ela não esboçou reação de chilique, como eu pensei, simplesmente sorrio, eu não entendi bem a razão, mas algo me dizia que eu iria descobrir em breve. Pelo menos não foi o garoto de outrora a nos flagrar naquele gesto tão romântico, se fosse, talvez ele tivesse iniciado uma briga. Jovens apaixonados são totalmente imprevisíveis, como eu mesmo era, pois sequer conseguia controlar meus impulsos, imagines os ímpetos alheios. 

Depois que eu tipo firmei um compromisso com Jorge Luiz, o tempo passou como sempre passa; eu mantinha meus planos exatamente como havia pensando. Eu pichava a data da noite de 93 nos muros que eu julgava que Carlos Salgado passaria, imediatamente tivesse a chance; eu deixava a boneca réplica de Tati, em um local onde intuitivamente eu imaginava que ele veria. Eu tocava aquela fita em toda parte, embora não desse pra ele ouvir, mas eu precisava todo dia fazer alguma coisa que me proporcionasse à sensação de que eu não estava de braços cruzados em relação ao crime cometido por aquele desgraçado. Talvez aquela altura eu já até tivesse esquecido o ódio que eu sentia por ele, mas eu não conseguia parar; o mundo ao meu redor não me permitia que eu freasse os meus anseios. Sem contar que uma noite ou outra eu revivia aquela noite em sonhos e acordava atordoada como se eu não pudesse acessar mais a realidade e fosse obrigada a viver aquela noite eternamente. Sempre eram uma tortura esses sonhos, e eu tinha a mais pura certeza que aqueles pesadelos só desapareceriam quando minha vingança fosse concluída. 

Quatro meses se passaram. Eu tive que me virar até as últimas consequências pra que o rapaz de poucos atributos físicos não revelasse o nosso segredo, mesmo depois que ele descobriu o meu romance com Jorge. A magricela, ex de Jorge, uma vez ou outra ainda me procurava pra uns beijos. Não vou dizer que era um sacrifício enorme beijá-la, era até bom, mas me confundia em demasia.
 Eu não sabia mais o que eu era, nem quem eu era, minha mente era uma confusão só. Pensava ser uma psicopata vivendo em um mundo aos pedaços que eu mesma construí com meus atos inconsequentes.

 Eu tentava enlouquecer um homem que talvez nunca fosse atingindo com minhas ações, embora ouvisse rumores que ele havia puxado a arma pra um colega e espancado uma garota na rua sem razão aparente. Mas seu pai era o delegado, tudo passava despercebido aos olhos do sistema, então não tinha como eu ter certeza que estava realmente funcionando. Minha amizade com a moça da Farmácia só aumentava. Eu mantinha, de certa forma, três relacionamentos conturbados com três pessoas próximas uma da outra. Qual era a chance de eu manter aquilo pra sempre? Eu vivia no mundo de Dom Quixote, acreditando em tudo aquilo que eu havia criado, sustentando tudo nas costas sozinha - e à medida que o tempo passava mais minha bola de neve crescia e a situação ficava mais insustentável. Minha mente e meu corpo estavam pra explodir e os estilhaços iriam atingir até mesmo quem não merecia. Eu tinha consciência de tudo isso, mas parecia que o colapso era inevitável.







Eu preciso falar sobre o verão de 1993 capítulo XIX








Passados quatro meses, Amanda Afrânio, minha querida amiga e esposa de Carlos Salgado, já havia dado a luz a uma criança linda. Bem, creio que ela era linda por conta que todas as crianças o são por serem inocentes e tudo mais, uma vez que eu jamais poderia ir a casa daquele desgraçado de modo a constatar o fato. E sabendo das barbáries que de um tempo pra cá ele vinha cometendo, seria muito arriscado, ou melhor, seria a minha sentença de morte, embora eu quisesse muito ver Tati ainda em botão. Durante os quatro meses de amizade verdadeira que fomos construindo, eu sempre conversava com Tati mesmo dentro da barriga, fazendo questão de chamá-la pelo nome, exatamente pra não correr o risco de Amanda escolher chamá-la de Eveline, como ela queria no início da gravidez. Aqueles papos com Tati na placenta, de certa forma funcionavam pra mim como uma terapia. E também Cabo Carlos não tinha muito direito de voto na questão do nome, pois ele era um pai ausente e desnaturado, quase sempre bêbado e violento, logo, não tinha moral pra nada, fato que me relatou Amanda umas mil vezes com os olhos cheios de lágrimas enquanto conversávamos. Então o nome seria Tati mesmo, como a minha querida amiga que o pai dela tirou a vida. Por alguma razão eu encasquetei a ideia de que se ele havia tirado a vida de uma Tati, justo que ele também colocasse outra no mundo. Certo que nunca, por hipótese alguma, isso lhe tiraria a culpa, nem o faria se redimir dos seus erros, mas eu julguei que seria importante. Era o meu mundo, eu o concebia como melhor me aprouvesse...

A minha amizade com Amanda foi também uma manobra arriscada. Carlos Salgado Filho poderia nos ver juntas e aí seria o fim. Ela mesma poderia comentar com ele alguma coisa a respeito de mim, era só ele associar os fatos, então todos os meus planos iriam por água abaixo. E se por um descuido ela visse a pulseira do Palmeiras com as suas iniciais que eu sempre carregava comigo. Não gosto nem de pensar. Provavelmente aquela pulseira fora um presente dela para o marido. Que desculpas eu inventaria pra justificar o fato daquele regalo se encontrar em minha posse? Eu tinha me arriscado em demasia até então. Porém, até o presente momento tudo tinha corrido como planejado. Carlos Salgado não tinha desconfiado dos meus atos, se sim, não se utilizou de represália, logo, minha vingança seria concluída. Como é bom quando os planos da gente funcionam exatamente como planejamos. Mas nem tudo era um mar de rosas... 

Numa tarde rotineira, eu caminhava em direção à escola com Carina, sempre olhando pros meus pés, como se eles fossem os únicos responsáveis por me levar à escola e o restante do meu corpo me servia apenas pra reflexões, meu mundo veio a desabar mais uma vez. Eu até tinha vontade de conversar com Carina durante aquelas caminhadas diária, mas já não conversávamos tanto, parecia que tínhamos nos tornado pessoas tão diferentes que assuntos meus não a interessavam em nada e o contrário também ocorria. Talvez fosse coisa de irmã mais velha em que a gente vai se distanciando um pouco, uma vai amadurecendo mais que a outra, mudando os objetivos, ao ponto de que aquela amizade da infância se esvai com o tempo - e já não nos parecíamos em nada. Ou era meu nível de loucura de que ela não era muito fã; talvez os rumores que corria na cidade a respeito de minha índole não a agradasse, então ela escolhia não compactuar com minha loucura. Eu não sei bem, mas a gente não conversava quase nada. Minha vontade era de contar tudo pra ela, todos os meus planos, que fases já haviam sido concluídas, mas sempre que essa ideia me vinha à mente, eu concluía que aquela loucura era serviço de uma mulher só. Se eu a envolvesse, ela poderia me desencorajar ou mesmo querer tomar as rédeas e eu não tinha certeza se ela poderia suportar o peso daquela responsabilidade, tanto fisicamente quanto mentalmente. Eu sim, tinha forças, determinação e a loucura ao meu favor. Todos viam Carina como a sensata, a irmã de juízo, não era justo que eu a envolvesse com as minhas neuroses, corria o risco dela pirar e ficar com a mesma fama que eu nos quatros cantos da cidade. Não era justo mesmo...

De repente, com o sol escaldante de sempre me suando a testa, me veio àquela velha sensação de perseguição novamente. Mas daquela vez meu coração acelerou; a realidade ao meu redor afunilou-se e meu mundo ficou do tamanho de uma caixa de fósforos. Tive dificuldade de respirar, o sol quente também não ajudava. Eu senti naquele momento que seria levada para o inferno por alguma entidade do submundo. Uma angústia estranha, uma certeza absurda oriunda sabe Deus de onde tomou conta de mim - e eu entrei em desespero. Carina, como sempre, caminhando a uns três passos a frente não notava o meu desconforto. Eu tentava gritar, mas era como em um sonho que a gente grita o mais alto que consegue, mesmo assim a voz não sai. Foi quando um carro vermelho, reluzente, passou a toda velocidade próximo do meu corpo já quase inconsciente batendo o retrovisor de raspão no meu ombro. Como eu me encontrava muito próxima do meio fio, o carro não conseguiu me pegar em cheio. Eu cai sem ar no asfalto quente; o mundo ficou meio opaco, meus ouvidos zuniram, mas eu pude ver as lanternas traseiras do mesmo carro vermelho que nos levou pra dar uma volta naquela noite de 93, atropelar minha irmã em cheio, fazendo com que seu corpo desse uma pirueta no ar indo cair no asfalto que fervilhava devido à temperatura.

O carro simplesmente se foi cantando pneu, assim como havia surgido. Eu fiquei no asfalto quente tentando gritar, mas minha voz ainda não encontrava meios de sair da garganta. Eu não sentia dor, apenas calor. Minhas lágrimas em conjunto com o suor umedeciam meus cabelos fazendo-os grudar em meu rosto, tapando assim, quase que totalmente minha visão. Eu não tinha força nos braços. Minhas pernas pareciam que nem existiam mais. Foi quando o mundo começou escurecer e a mesma cena de outrora de índios selvagens batendo tambor em meu redor me surgiu não sei de onde. Eu não ouvia os sons da realidade, somente dos tambores dos selvagens que ritmados entoavam uma canção que dizia: levanta Val! Levanta! Tum, Tum, Tum, levanta... Foi quando eu encontrei forças, respirei o ar mais quente que um ser humano poderia sentir adentrando o aparelho respiratório e corri em direção a minha irmã. À medida que eu me aproximava, a realidade batia nas minhas costas com o martelo da punição. Eu tinha provocado tudo aquilo. Se eu tivesse ficado quieta, se eu simplesmente tivesse continuado minha vida, assim como Carina me aconselhava, nada daquilo teria acontecido.

Retirei os cabelos dos olhos, foi quando a última pancada me bateu a nuca: vi Carina embebida em seu próprio sangue. Sua perna não estava numa posição normal, então mais uma certeza se apoderou de mim aquela tarde: eu tinha matado minha irmã. Eu não consegui mais chorar, só desfaleci diante do corpinho magro de Carina com minhas mãos trêmulas e os olhos esbugalhados, como se finalmente a minha transformação em demônio, o último estágio da metamorfose, tivesse sido concluído ali. Implorei que os selvagens me levassem naquele momento, pois eu sentia que não pertencia mais aquele mundo que com minhas próprias mãos eu havia destruído. Tudo que eu tocava, virava ruína, se desmanchava e eu não podia fazer nada pra mudar aquela maldição. Eu tentava encontrar outro culpado pra toda aquela desgraça, mas não conseguia; tudo era culpa minha. A psicóloga do manicômio me dizia sempre que não havia um culpado para os meus devaneios. Eu sempre soube até então que o culpado era Carlos Salgado, porém, naquele momento, eu me sentia o meu próprio algoz, pois todos os acontecimentos posteriores fora eu que dei vazão pra que desenrolassem. Se eu tivesse ficado quieta no meu canto?! Mas como não fazer nada diante das injustiças do mundo? Como não fazer nada vendo todos os dias o assassino de sua melhor amiga livre? Como ficar de braços cruzados vendo o desgraçado que te violentou de forma brutal vivendo como senão tivesse cometido crime algum? Não seria eu, Valquíria Deodato de Sousa, a adolescente apática que aceita tudo como se fosse um fantoche da vida. Não, não. Eu tentava encontrar algum fato que me isentasse da culpa, mas não importava o que pensasse, sempre me ocorria que eu era a única culpada. Naquele instante, diante do calor e do sangue de minha irmã, eu existia e não existia de acordo com que a realidade me surgia, então, sem escolhas, eu desapareci com o mundo a minha volta. Nada mais eu vi nada mais senti, até acordar com as luzes brancas de algum hospital me ofuscando a visão sabe Deus quanto tempo depois.


Eu preciso falar sobre o verão de 1993 capítulo XX




Fechei novamente os olhos e talvez tenha adormecido de novo, quando dei por mim, uma frase ecoava na minha cabeça se entrelaçando entre as dores que eu amargava:
“O mundo é um lugar escuro e o coração é uma caixa de fósforos com palitos finitos, não desperdice.” 
Lembrei que eu havia sonhado com anjos divinos de asas cinza, olhos cor de mel, sorrisos tortos e cabelos mal penteados me dizendo isto repetidas vezes: "Valquíria, o mundo é um lugar escuro e o coração é uma caixa de fósforos com palitos finitos, não desperdice". Embora não soubesse o que significava, parecia-me que aquela frase tinha muito sentindo. 
Ao abrir os olhos de vez, minha mente reconstituiu não só o atropelamento de Carina, mas todo o irremediável do meu passado. Lembrei-me da minha infância, das brincadeiras, das bonecas, das paixões inocentes, até a noite de 93. Talvez a fraqueza, os remédios, me proporcionara aquele flash back desnecessário, mas me era inevitável pensar no tempo. Eu sentia dor de cabeça, meu ombro estava enfaixado. Aquele cheiro de éter característico de hospital me proporcionava náuseas quando o inalava sem querer. Entretanto, logo vi minha mãe cuja agradeceu a Deus por eu ter despertado sem grandes sequelas. Mal sabia ela o estado de minha mente. Eu balbuciei o nome de Carina com dificuldade, mas o suficiente pra que ela ouvisse e me dissesse que ela estava bem. Tinha quebrado uma perna, mas iria se recuperar sem sequelas maiores. Não importava o quanto repetissem que ela estava bem, a possibilidade da morte às vezes pode ser mais tortuosa do que a própria morte. Se Carina morre naquele acidente proposital, minha vida não poderia continuar. Embora não tenha acreditado de todo que ela realmente estava bem, escolhi a calma de esperar os fatos se confirmarem pra sofrer. Se bem que o semblante de minha mãe transparecia uma calma que me parecia que ela estava falando a verdade. A gente conhece quando alguém está mentindo, principalmente quando se trata de assuntos tão sérios. 

Depois da calma proporcionada pela certeza do bem estar de Carina, eu adormeci novamente. Os anjos voltaram repetindo a mesma frase que pra mim tinha talvez sentindo. Tem sonhos que nos transportam para o mundo melhor do que aquele que vivemos, assim era quando eu sonhava com aqueles anjos imperfeitos. Eu compreendi que eu quis criar o meu mundo em que eu estava no controle de tudo e de todos, sem a menor possibilidade do acaso - e me custou muito compreender que as minhas ações poderiam reverberar na existência do outro mudando o curso de suas vidas; porém, até então meu egoísmo não permitia ver os anseios, os sentimentos, quer fossem bons ou ruins que as pessoas ao meu redor tinham; esse fora o meu erro até então. Mas talvez eu ainda tivesse chance de mudar qualquer coisa.

Após longas horas de sono, ou poucos segundos, de fato não teria como eu saber, me aparece uma visita que eu jamais pensei em vê-la tão cedo: Amanda Afrânio. Antes mesmo de chegar direito, ela   me abraçava aos prantos como se não existisse mais o amanhã. Após alguns segundos sem conseguir proferir uma palavra que fosse, em meio aos soluços e respiração ofegante, ela me pede desculpas por qualquer coisa. Eu buscava na mente o motivo daquelas desculpas, mas nada me ocorria. Eis que Amanda se recompõe e então mais uma vez pede desculpa, mas daquela vez ela inclui na frase a sentença, "eu não sabia". Eu entendi menos ainda, mas ela continuou:

- Eu morava com um assassino e não sabia. Você precisa perdoar a minha indiferença a sua realidade. Porque você não me contou? Eu tinha o direito de saber. Porque você não me contou? 

Foi então que eu me dei conta que ela havia descoberto tudo que o Cabo Carlos Salgado, pai de sua filha, havia feito. Ela ainda não compreendia que não era só contar, tinha tanta coisa em jogo; se ela não acreditasse, o desgraçado podia negar, e o pior, se eu contasse ele teria a certeza de que eu estava próxima de alguém muito próximo a ele, com certeza ele não iria permitir tamanho disparate. Se eu tivesse contado não tinha conseguindo ir tão longe com meus planos. Não julguei necessário falar isso porque ela não iria entender. Talvez  ela não acreditasse nas ameaças que sofríamos e tudo mais... Ela continuava falando, como se quisesse colocar pra fora tudo que estava lhe torturando: 

- Eu sinto muito por sua amiga. Eu sinto muito por você, por sua irmã, por tudo que aconteceu e vinha acontecendo desde então. Se eu soubesse o tipo de pessoa que ele era, ou que tinha se tornado, eu não teria casado com ele. Meu marido por pouco não matou sua irmã também, como fez com sua amiga Tati. - Disse ela tentando controlar os soluços. – Eu só não entendi porque você fez tanta questão que minha filha tivesse o nome da sua amiga, mas tudo bem, eu não posso ter a presunção de tentar entender a sua dor..., se bem que agora até entendo. 
Ela continuava falando e eu não esboçava reação alguma; algo me dizia que qualquer palavra ali era desnecessária:

- Quando Carlos se deu conta de que a filha dele se chamava Tati, foi à gota d’água, ele surtou, bebeu e quando retornou, quebrou tudo em casa e tentou matar a nossa filha com um travesseiro, por pouco não consegui impedir. Depois ele confessou; contou tudo que tinha acontecido aquela noite. Eu não conseguia sequer ouvir as barbáries que ele dizia. Eu descobri que morava com um monstro. Depois ele pegou o carro, aquele carro que ele escondia na garagem dos fundos como se fosse um grande tesouro e saiu louco como nunca proferindo disparates aos ventos. 
Ao dizer aquilo, desaguava dos olhos de Amanda lágrimas justas, lágrimas de quem viveu uma mentira por longos anos. Quando ela me contou que seu marido havia tentado matar a sua filha, mais eu uma vez a bigorna da punição me esmagou ao me deparar com a consciência de que se ele tivesse conseguido, em um único dia, Carlos Salgado havia tirado mais duas vidas importantes pra mim - e a principal responsável seria eu. Suporto isto sem desandar? Ela continuou falando enquanto eu tentava conter os espasmos musculares que me ocorriam diante daquela nova realidade: 

- Depois de salvar a minha filha, eu rapidamente liguei pra polícia e contei tudo, mas pouco tempo depois eu descobri que ele tinha entrado com o carro e tudo na delegacia e por pouco não atropelou alguém. Ele foi prontamente imobilizado pelos guardas, só não o mataram porque reconheceram que era o filho do chefe. Lá, ainda em surto, ele confessou tudo. Então diante dos fatos, do sangue de sua irmã no carro, não teve como o pai dele fazer nada; era um escândalo aos olhos de todos, não havia sistema que o protegesse mais. Mas agora está tudo bem, ele não fará mais mal pra ninguém. O prenderam, mas devido sua insanidade visível foi logo transferido para o manicômio da cidade. Eu até que o amava, não sei de onde vinha esse amor, mas até que o amava. 

Amanda não sabia que por quase dois anos aquele local fétido pra onde levaram o homem de olhos bonitos,  fora por muito tempo meu lar, também não fiz questão de informá-la um fato tão sem importância pra ela. Ao ouvir que Carlos Salgado estava recluso no manicômio e ninguém mais havia deixado de respirar por suas mãos, embora por pouco tempo, cheguei até pensar que a justiça estava finalmente sendo feita. Eu nunca vou saber se foram as minhas ações que levaram Carlos Salgado a loucura total, ou foi somente sua consciência. Talvez ele sempre fora realmente louco. Eu realmente não sabia e nem precisava saber. De repente aquelas ações eram só uma forma de me passar à sensação de que eu estava fazendo alguma coisa. No entanto, pouco importava as razões, ele finalmente estava no lugar que eu sempre desejei que ele estivesse. Novamente me senti no controle, esqueci a culpa, me vesti do ódio daquele desgraçado, ódio que era justo e abracei Amanda bem forte motivada por aquela sensação que estava no controle de novo. Eu, Valquíria, a eterna caçadora de mim estava de volta. Certo que eu precisava ver Carina, ver aquele rostinho que aquele desgraçado poderia ter tirado de mim, mas minha mente se encheu de ódio, de rancor, se aqueles sentimentos me faziam bem ou mal, pouco me importava, não ia buscar me livrar deles, pois era a motivação que eu precisava. Levantei mesmo contra as instruções de Amanda me dizendo que eu tinha passado por um grande trauma, porém eu pouco me importei, pois me sentia fisicamente bem. Fui até onde Carina se encontrava descordada, mas segundo meu pai que a vigiava de perto, ela parecia muito bem. Os enfermeiros do lugar me localizaram e logo me sedaram e me colocaram no quarto novamente. Depois de um tempo recebi alta, assim como Carina. Na saída do hospital, me devolveram meus pertences, inclusive a pulseira do palmeiras, aquela que era pra mim a insígnia dos meus pesadelos - e voltamos pra casa. 

Encarar Carina depois do acidente, não foi fácil, pois a culpa ainda me assolava, no entanto, ela só queria me abraçar, pois ela não sabia que eu tinha continuado mexendo com fogo com aquele miserável, então disse que aquilo era inevitável, mas como agora ele iria apodrecer no manicômio, não precisávamos mais nos preocupar:  
- Ah Carina! Se você soubesse que o mundo é um lugar escuro, bem mais escuro do que a maioria jamais supusera.

Leia o capítulo 21 clicando nesse link




Eu preciso falar sobre o verão de 1993 capítulo XXI



Com o tempo, eu fui me recuperando e pra não perder o ano escolar, fui obrigada a voltar ao colégio. Se me perguntassem se eu queria retornar as aulas com toda aquela pressão na cabeça, eu diria que não. Enfrentar Jorge Luiz, que sequer me apareceu enquanto me recuperava não me parecia uma boa ideia. E também eu tinha que trazer as atividades pra que Carina não perdesse o ano também. Eram tantas banalidades. Eu não suportava nem mesmo pensar em tudo aquilo; naquelas bobagens de gente comum. Eu era um monstro, uma chaga sangrenta do senhor, meus pensamentos buscavam uma razão maior, qualquer coisa que me trouxesse mais sentido pra vida e não seria na escola que eu encontraria respostas. Eu existia, mas muito pouco. 

De manhã, a cabeça doía, meus olhos flamejavam, as pontas dos meus dedos ardiam por alguma razão desconhecida. Meus tiques nervosos sobrecarregavam os movimentos das minhas pernas. Eu queria que tudo aquilo parasse. Que o mundo parasse de girar e começasse girar em direção contrária, talvez assim como de cabeça pra baixo nós vemos um mundo diferente, eu vivenciasse uma nova realidade. Eu não mais me reconhecia dentro da desgraça do meu passado. Não havia mais lugar no mundo que me coubesse. Eu só queria me esconder, entrar em um casulo úmido em que eu só pudesse respirar e só sair quando eu fosse alguém diferente, limpa dos meus pecados e mazelas mentais. Deus fora injusto comigo nos meus moldes. Eu não tinha que me questionar sobre quem eu era; sobre as possibilidades daquilo que eu seria se sempre chegava à conclusão nessas reflexões que eu nunca seria nada, que eu nunca andaria entre as estrelas, nem cavalgaria nos montes verdejantes da sanidade. Eu só queria respirar os campos de girassóis num dia quente e me deixar levar pelas cores, pela beleza do sol e do céu azul. Era pedir muito Deus?  Como eu queria ser um girassol em meio a milhões iguais a mim. Eu só teria que acompanhar o sol todos os dias. À noite, eu simplesmente dormiria, sem essa de refletir, de me questionar. Depois de um tempo, como último de meus atos nobres e comuns, minhas sementes alimentariam um canário de uma senhora aposentada e solitária. Tudo seria tão mais simples. Tudo seria tão mais eu. Quem eu sou, Deus? Quem eu serei? 

Diante desses pensamentos, meus olhos pesaram com o peso dos sonhos de uma adolescente transtornada, meu peito doía, tinha dificuldade pra respirar. Parecia-me que a solução pra tudo aquilo era sair na rua e gritar bem alto, ou mesmo bater a cabeça com força em um poste, só pra sentir o cheiro do meu sangue, assim recomporia pela dor os meus pensamentos, mas me contive como pude.

Chegada a hora de me arrumar pra ir à escola, eu não tinha vontade de passar um batom sem graça, meus cabelos não careciam de se pentear, meus olhos murchos não necessitavam de sombra, pois toda escuridão em mim transparecia no branco dos meus olhos. Fiz uma Maria Chiquinha com prendedores de cabelos indiferentes quanto a cores e modelos; eu só precisava de sentindo, não de aparência. Tomei minha mochila que parecia pesar uma tonelada e sai.  Na calçada, olhei para o horizonte, respirei o sol mais uma vez e coloquei os primeiros pés no mundo externo depois de alguns dias dentro de mim mesma. Acionei no meu walkman de última geração La traviata, interpretação brilhante dos Três Tenores e me direcionei a escola como quem valsava rumo ao seu destino inevitável. A caminhada com música me pareceu mais viável. Ao dobrar a esquina, quando avistei o portão da escola, aumentei o volume da ópera no máximo, pois quando adentrasse aqueles muros, o meu espetáculo, meu último ato, teria a plateia que merecia. 

Caminhava convicta, pois o mundo a minha volta me era indiferente. O único som que eu ouvia era a valsa da minha vida. Ao passar pelo portão, deitei a mochila no solo quente, desfiz o penteado, limpei as lágrimas que caíam do meu coração e valsando La traviata, deitei os vasos de plantas no corredor principal; arranquei a saia da inspetora e dançado brilhantemente com as mãos, continuei em frente. "Como a música é bela!" Totalmente indiferente à plateia que aplaudia aturdida aquele espetáculo tão enriquecedor de almas vazias eu seguia como Dorothy na estrada de tijolos amarelos. Logo encontrei Jorge Luiz no corredor, o beijei rapidamente e continuei valsando. Mais a frente, avistei aquele que seria minha marionete e ignorado tudo e a todos, o beijei também. Abracei uma coluna e envolvida pela música a beijei também. Encontrei aquela magricela do beijo bom e me deliciei com seus lábios. A plateia me acompanhava eufórica, torcendo pra que aquele brilhante espetáculo não findasse tão cedo; era tão bonito: Funiculi, funiculá! Deitei umas cadeiras, gritei o grito dos inocentes, e continuei como se também não quisesse que acabasse. Mais a frente, eu avistei o vigia cujo se encantava com o pirulito de uma aluna; valsei até seu pescoço - e mais uma vez - porém agora embebida pela arte, eu arranquei um pedaço com gosto e sem remorso de sua orelha suculenta. Como gesto último, eu me deixei que caísse na areia quente da primeira hora da tarde e permiti que me contivessem. Só pedi que não desligassem a música; só não me tirassem a ópera; só não me tirassem a arte.    

Com os lábios embebidos em sangue alheio, os olhos cheios de alma, as mãos trêmulas, cabelos revoltos, mais uma vez fui levada para aquele local que sempre fora o meu lar: o manicômio da cidade.
Lá estava eu novamente naquela construção antiga de mais um século construída pra abrigar prisioneiros de guerra. Ao rever aquelas paredes sujas e surradas pelo tempo; ao vislumbrar aqueles corredores, aqueles túneis, aquelas vielas e aqueles loucos iguais a mim, finalmente me senti em casa. Lá, me sedaram e eu adormeci, findando assim a mais bela Ópera por mim estrelada. Só me restava rosas vermelhas ao final, mas adormecida eu não pude sentir o cheiro das rosas jogadas no palco pela plateia agradecida pelo espetáculo.

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Eu preciso falar sobre o verão de 1993 Capítulo XXII



Quando dei por mim, eu me encontrava em os mesmos aposentos de um ano atrás. Era os mesmos lençóis, o mesmo cheiro, as mesmas cores. A enfermeira era a mesma. Notei que se tratando do ofício da loucura, pouca coisa muda ao longo do tempo. Novamente naquele local, eu não podia demonstrar o menor gesto que representasse insanidade. Mantive-me serena a partir do momento que o efeito dos calmantes amenizou. Dadas às experiências passadas no manicômio, o que não me sobraria era tempo livre pra pôr minhas ideias em ordem e continuar com os meus planos.

Passados uns dias, eu recebi visita de meus pais, não esbocei reação estranha, não podia demonstrar que ainda tinha resquícios daquele surto na escola em mim. Se bem que, depois daquilo, seria muito difícil alguém acreditar que eu me recuperasse, uma vez que a minha reincidência demonstrava que eu talvez não tivesse chances mesmo de levar uma vida normal. Pelo menos era no que todos acreditavam.

Os dias se passaram e eu usei o tempo ocioso pra investigar os novos e antigos pacientes. Como eu não era uma paciente perigosa, ao menos em parte, eu tinha certa liberdade dentro das paredes do local. Eu também conhecia os túneis antigos, as passagens secretas que davam pra circular sem ser vista pelas dependências. Eu tinha acesso até mesmo a sala do diretor e toda e a ala dos criminosos perigosos. Eu não estava sozinha ali, nunca estive leitor.

Às oito horas de uma sombria noite de sexta feira, entoada pelos assovios de um paciente que achava que chamaria atenção da lua, eu me levantei, coloquei meus jeans velho e resistente, entrei nas minhas congas de sempre, fiz um rabo de cavalo no cabelo, me desenhei uma maquiagem nada discreta, tomei minha mochila cuja continha a boneca de Tati, a pulseira do Palmeiras, meu toca fitas e sai pelos túneis úmidos do lugar em direção a ala dos criminosos perigosos. No quarto 47, eu entrei pela entrada de ar que poucos conheciam. Tive cautela somente pra não fazer barulho que chamasse a atenção dos vigias do lado de fora, pois o paciente mesmo, propositadamente, estava sobre efeitos de relaxantes musculares fortíssimos e não daria por mim. Joguei o paciente do quarto na maca que já estava naqueles túneis há muito tempo. O levei pra um lugar secreto que somente eu e outra pessoa conhecíamos bem. Colocamos Carlos Salgado numa cadeira giratória e lá pedi a minha companheira que me deixasse sozinha com ele. Era mesma pessoa que me dera abrigo com um guarda chuva até em casa em uma manhã no passado, que me ajudava naquele último ato. A mesma que tantas vezes encobriu com destreza meus deslizes, que me ajudou na medida do possível pra que eu chegasse até aquele ponto, até aquele cheque mate. Somente ela me entendia. Somente ela compreendeu, desde o início, que eu precisava fazer alguma coisa em relação àquela barbárie que sofremos no verão de 1993.

Eu me dispus em frente ao corpo inerte de Carlos Salgado e todos os meus pensamentos, todos os meus planos, me vieram à mente como um tsunami. Mas não eram mais uma tortura; eram uma convicção de que tinha feito o que eu achava certo. Há questões de julgamentos distintas, mas pra mim, diante do ódio que eu sentia daquele desgraçado, diante de tudo que ele havia feito, pra mim, não existia alternativa senão aquela. Era a justiça sendo feita! Eu inspirava aquela certeza com tanta força que parecia que o universo era pequeno pra comportar as minhas convicções.

Cabo Carlos Salgado foi aos poucos acordando e quando vi os seus olhos verdes e grandes, me veio uma sensação parecida com aquela vivenciada na noite de 1993. Eu ainda tinha muito medo dele, mesmo tendo a mais plena certeza que ele se encontrava suficientemente imobilizado. Não gostei de vê-lo totalmente sem chances de escapar, de fazer qualquer coisa, então desamarrei sua mão esquerda antes que ele recuperasse totalmente os movimentos. Esperei ele recuperar a consciência totalmente, mas ainda não tinha coragem de olhar diretamente nos seus olhos, até que, meio que num reflexo, num espasmo muscular ele segurou no meu braço. Ao sentir a textura das suas mãos que eu conhecia bem, eu revivi tudo daquela noite. Os gostos, os toques, os cheiros, os sentimentos, as dores. Então pensei nas noites que passei sem dormir pensando no que faria com Carlos Salgado se me encontrasse em um local sozinha com ele, então me enchi de ódio, do ódio que alimentei por quase três anos. Bati no seu rosto de leve e disse:

- Lembra de mim? Lembra da noite de 17 de fevereiro de 1993? Daquela noite que você prometeu deixar três garotinhas em casa com toda segurança? Hein? E que, em vez disso, você surtou, achou que podia se aproveitar brutalmente das três. Deu-nos bebidas com drogas que nos fez esquecer de perder a consciência. Mas apesar de estar alterada aquela noite por conta dos entorpecentes, eu ainda me lembro: lembro-me da tua saliva espessa, do cheiro do capim daquele terreno baldio; do gosto do sangue, lembro-me do frio, das cores da noite quando eu acordei. Lembro-me de tudo!

Olha em volta Senhor dono do mundo!
Olha esse lugar: essa cadeira gira em todas as direções pra que decore todos os detalhes desse lugar que foi construído exclusivamente para Ti. Olha essa terra úmida na minha mão, sinta o gosto dela, sinta o gosto desse lugar fétido. Tem um gosto bom? Responde desgraçado! Eu quero que guarde na memória cada detalhe. Eu sabia que lá fora eu não teria como me aproximar de você sem correr riscos. Lá fora o sistema e o teu pai o protegia, mas aqui dentro, nos somos iguais. Aqui há somente eu e você. Durante os dois anos que passei aqui, eu não fiz outra coisa senão preparar esse lugar especialmente para ti. Não sabia se conseguiria realmente vê-lo aqui exatamente onde se encontra agora, mas eu precisava tentar. Não me restava nada. Eu só continuei graças o desejo de vingança. E como você mesmo pode constatar: eis nos aqui, exatamente como imaginei. Óbvio que muitas vezes pensei em largar tudo e levar uma vida comum, mas o mundo ao meu redor jamais me permitiu. Agora ouça essa voz nesse toca fitas. Reconhece essa voz, não é mesmo? Você ficava com ela, e mesmo assim a matou. - E essa roupinha, você lembra-se dela? Desgraçado!?

Naquele momento eu não contive as lágrimas. Não sabia se chorava por conta do ódio, ou da saudade, ou mesmo se chorava por me sentir exatamente igual a Carlos Salgado. Talvez eu não fosse diferente dele.

- O que você quer de mim? O que quer de mim? Já faz tanto tempo. Eu já confessei tudo que fiz. Vou pagar por tudo. Não é justo, solte-me!

- Não! Não importa se nunca mais vai sair daqui, nunca vai pagar as vidas que você destruiu. Não foi só Tati que você matou aquela noite; você também me tirou a vida, somente me permitiu continuar respirando. Você me tirou a capacidade de amar incondicionalmente. Tirou-me a capacidade de me aproximar das pessoas sem querer algo em troca. Você entende o que é isso?! Agora eu só busco amar pra me sentir amada. Já não sei quem eu sou. Você me tirou a capacidade de levar uma vida comum de adolescente, com paqueras, com chicletes, com músicas. Desgraçado! Mil vezes desgraçado! Depois de ver minha amiga morta, eu só conseguia pensar naquela cena. Sem contar na culpa por me sentir uma psicopata. Todos os meus pensamentos pareciam ser de alguém sem sentimento algum. Minha única motivação era o ódio que amargava da sua existência. Você tirou tudo que havia de bom em mim Carlos Salgado. Agora veja você mesmo onde nos encontramos? Acha mesmo que um plano como esse pode surgir na cabeça de alguma adolescente normal? Responde-me miserável!? Não ver que você me tornou em quem você era. Mas não importa. Tudo isto acaba hoje...

Minha cúmplice tinha deixado ali uma tesoura de jardineiro de tamanho médio para que eu executasse o meu último ato.

- Vê essa tesoura Carlos Salgado? Ela irá arrancar de você o que lhe levou a cometer as suas atrocidades. Ela irá arrancar a sua dor. Irá expurgar os seus demônios e também os meus... Somente assim, me sentirei vingada.